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O
Anjo da Neve
«(…) Deixava-se ficar assim sentada
âté que o pai batesse com força à porta da casa de banho e gritasse então minha
menina, quando é que acabamos que já estamos atrasados também hoje? Mas não servia
de nada. Assim que chegava ao primeiro teleférico ficava de tal maneira apertada
que se via obrigada a desenganchar os esquis, a pôr-se de cócoras na neve
fresca, um pouco afastada dos outros, a fingir que apertava as botas enquanto
fazia chichi. Amontoava um pouco de neve junto às pernas mantidas apertadas e
mijava se toda. Dentro do fato de esqui, nas meias-calças, enquanto todos os
colegas olhavam para ela e Eric, o professor, dizia como sempre estamos à espera
da Alice. É mesmo um alívio, dava por si a pensar todas as vezes, com aquela
bela tepidez que se derretia entre as pernas enregeladas. Seria um alívio. Se
não estivessem todos ali a olhar para mim, pensava Alice. Mais tarde ou mais cedo
vão perceber. Mais tarde ou mais cedo vou deixar uma mancha amarela na neve.
Vão gozar todos comigo, pensava. Um dos pais aproximou-se de Eric e perguntou-lhe
se naquele dia não estava demasiado nevoeiro para subir até lá acima. Alice apurou
o ouvido, cheia de esperança, mas Eric exibiu o seu sorriso perfeito. O
nevoeiro está só aqui, disse. No cume está um sol que até rebenta as pedras. Coragem,
toda a gente a montar.
No teleférico Alice fez, par com
Giuliana, a filha de um dos colegas do pai. Durante o percurso não falaram. Não
sentiam uma pela outra nem simpatia nem antipatia. Não tinham nada em comum a não
ser o facto de não quererem estar ali, naquele momento. O ruído que se ouvia
era o vento a varrer o cume de Fraiteve, ritmado pelo escorrer metálico do cabo
de aço em que Alice e Giuliana estavam penduradas, de queixo enfiado na gola do
casaco para se aquecerem com a respiração. É o frio, não estás realmente apertada,
repetia Alice a si própria. Mas quanto mais o cume se aproximava mais o aguilhão
que trazia na bexiga penetrava na carne. Aliás, era algo mais que isso. Desta vez
ela estava mesmo prestes a não aguentar mais. Não, é apenas o frio, não podes
fazer chichi agora. Acabaste de fazer há pouco, anda lá. Uma golfada de leite
rançoso subiu-lhe à epiglote. Alice engoliu-o de novo com nojo. Estava aflita,
aflita de morrer. Há mais duas estâncias antes do refúgio. Não aguento tanto
tempo assim, pensou. Giuliana levantou a barra de segurança e ambas deslocaram
o rabo um pouco para a frente para descerem. Quando os esquis tocaram no chão Alice
deu um impulso com a mão pata se separar da cadeirinha». In Paolo Giordano, A Solidão dos
Números Primos, 2008, tradução de José Serra, Bertrand Editora, Lisboa, 2013,
ISBN 978-972-251-834-5.
Cortesia de BertrandE/JDACT