Portugal,
1808. Uma história de guerra e coragem contra Napoleão
Madrid,
2 de Maio de 1808
«(…) Foi disparado um tiro que
ecoou nas casas. Hanley não conseguiu ver de onde veio, e não viu nenhum cavalo
ou homem a cair, mas o som acordou-o do seu sonho. Foram gritadas ordens, e os
cavaleiros franceses avançaram a trote. Era também hora de ele partir. Madrid estava
tensa nesse dia. Os franceses tinham transferido sistematicamente a família
real espanhola, levando-a em segredo para o cativeiro, mas a tentativa para
levar um dos jovens príncipes essa manhã tinha conduzido a um motim. Hanley já
conhecia bem a cidade e podia sentir a ira crescente. As pessoas por quem ele
passara tinham gritado Hoje é o dia!, e Cedo atacaremos!, ou
simplesmente murmurado Morte aos franceses. O inglês ia deixar Madrid,
mas primeiro tinha de dizer um último adeus. Maria Pilar era bailarina, uma
rapariga pequena, triste e muito bonita que tinha sido seu modelo e depois
amante. Mapi, o seu nome
artístico que todos os amigos usavam, tinha gostado de cozinhar e de fazer
limpezas para ele, criando um lar que ela nunca antes tinha tido. Demorou algum
tempo até se aperceber quão importante ele era para aquela rapariga espanhola.
Agora era obrigado a dizer-lhe que tinha de se ir embora e que ela não o podia
acompanhar. Mapi não discutiria, e em muitos aspectos ele temia ainda mais a
sua aceitação silenciosa da partida, a silenciosa mágoa que ele iria ver nos seus
olhos castanhos-claros. É verdade que as perspectivas dela na Grã-Bretanha
seriam más, mas ele sabia que queria realmente libertar-se do fastidioso afecto
dela. Hanley não admirava muito esta sua faceta, e era agora mais difícil
esconder-se atrás de ideias sobre uma alma criativa que necessitava de se
libertar de todas as ligações.
Praticamente já quase não tinha
dinheiro, a compra de um cavalo para o levar para norte tinha levado grande
parte dele, e não podia permanecer em Madrid. Da maneira como estavam as coisas
não era em qualquer caso saudável permanecer como inglês. Até agora o disfarce de
irlandês exilado tinha sido suficiente para satisfazer os franceses que ele
tinha conhecido, mas era improvável que durasse muito mais tempo. Ironicamente a
única fonte de rendimento de Hanley era o salário reduzido que recebia como
oficial subalterno no Exército Britânico. O pai tinha-lhe assegurado este posto
quando ele tinha apenas dez anos, na época anterior à abolição de tais abusos.
Hanley nunca tinha visto o seu regimento, nunca tinha servido um único dia no
exército, e agora não tinha qualquer desejo de o fazer. Tinha esperança de
encontrar algo melhor do que este último recurso quando regressasse a
Inglaterra. No entanto, no caso da improvável descoberta da sua verdadeira
identidade, seria provavelmente inútil tentar convencer os franceses de que era
apenas um simples artista, sem qualquer interesse pela política e que na
verdade sentia uma forte simpatia pela França e pelo seu império.
Hanley deambulou pelas estreitas
vielas de Madrid ao som de tiros esporádicos. Ao fim de meia hora já tinha
passado por meia dúzia de cadáveres. Quatro deles eram soldados franceses,
muito novos e magros. Um deles tinha tentado deixar crescer um patético bigode,
mas jazia agora sem o seu uniforme, excepto a suja camisa branca, coberta por
uma massa de sangue escuro, quase preto que saía da garganta cortada. O quarto
francês era mais velho, de cabelo grisalho e gordo. Ainda tinha vestido o
uniforme de oficial e estava pregado pelas mãos e pés aos grandes portões de
madeira nas traseiras de uma casa de um nobre. O casaco tinha sido rasgado e o
peito era uma massa de sangue coagulado sobre o qual esvoaçavam muitas moscas.
Hanley não sabia se o homem já estaria morto quando foi pregado aos portões.
Ele não tinha a certeza se queria saber e seguiu o seu caminho, afastando-se
rapidamente daquela visão e daquele cheiro pestilento que o sufocava. Um pouco
mais adiante estavam dois espanhóis, um deles com um buraco mesmo no centro da
testa e outro com ferimentos de faca na barriga. Daqui em diante, as poucas pessoas
que encontrou nada disseram, apressando-se no seu caminho.
Maria Pilar não se encontrava em
casa, nem na casa onde vivia uma das suas amigas. Hanley falou com a rapariga,
uma criatura desesperadamente magra de olhos encovados cuja tosse denunciava a doença
que a mataria antes dos vinte anos. Ela parecia olhar acusadoramente para ele
enquanto lhe dizia que Mapi tinha ido com um grupo até à Puerta del Sol para mostrar os franceses. A rapariga doente
disse que também teria ido, mas que a noite não tinha sido boa.
Surpreendendo-se a si próprio, Hanley deu-lhe algumas das poucas moedas que
ainda lhe restavam. Ela hesitou durante um longo momento antes de as aceitar. Hanley
dirigiu-se à grande praça no coração de Madrid. As ruas estavam estranhamente
vazias, mas o barulho aumentava. A multidão cantava e ouviram-se mais tiros.
Depois tudo ficou em silêncio durante um momento». In Adrian Goldsworthy, Soldados
de Honra, 2011, tradução de João Boléo, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2011, ISBN
978-989-626-342-3.
Cortesia de ELivros/JDACT