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Poetas
e Amantes
«(…)
Uma questão de pró-forma; o homem não tem a mínima intenção de se apresentar.
Está na sua cidade e é ele o inquiridor. Mais tarde, Ornar saberá a sua
alcunha: chamam-lhe o Estudante da Cicatriz.
De cacete na mão, com uma citação na boca, amanhã fará tremer Samarcanda. Por
ora, a sua influência não vai além
destes jovens que o rodeiam, atentos à sua mais pequena palavra, ao mínimo sinal.
No seu olhar, um súbito clarão. Vira-se
para os acólitos. Depois, triunfalmente, para a multidão. Exclama: por Deus,
como pude não reconhecer Omar, filho de Ibraim Khayyam de Nichapur? Omar, a
estrela do Khorassan, o génio da Pérsia e dos dois Iraques, o príncipe dos
filósofos! Mima um profundo salamaleque, e faz rodopiar os dedos de ambos os
lados do seu turbante, suscitando infalivelmente asgargalhadas dos basbaques. Como
pude não reconhecer quem compôs este robai
tão cheio de piedade e de devoção:
Acabas
de quebrar o meu cântaro de vinho, Senhor.
Barraste-me
a estrada do prazer, Senhor.
Derramaste
no solo o meu vinho carmesin.
Deus
me perdoe, estarás ébrio, Senhor?
Khayyam
escuta, indignado, inquieto. Uma tal provocação é um apelo ao homicídio, ali
mesmo. Sem perder um segundo, lança a sua resposta em voz alta e clara, para
que ninguém na multidão se deixe enganar: ouço essa quadra da tua boca pela
primeira vez, desconhecido. Mas eis um robai
que realmente compus:
Nada,
eles nada sabem, nada querem saber.
Repara
nestes ignorantes, eles dominam o mundo.
Se
não fores um deles, chamam-te incréu.
Não
lhes ligues, Khayyam, segue o teu caminho.
Omar
fez sem dúvida mal em acompanhar o seu reparo de um gesto desdenhoso
dirigido aos seus adversários. Estendem-se mãos, puxam-lhe pelas roupas, que se
começam a rasgar. Ele cambaleia. As suas costas embatem num joelho, depois na
lisura de uma laje. Esmagado sob a turba, não se digna a debater-se, resigna-se
a permitir que lhe retalhem o vestuário e que lhe deixem o corpo em frangalhos,
entrega-se ao mole torpor da vítima imolada, nada sente, nada ouve, está
fechado em si mesmo, muralha até ao céu e portões trancados.
E contempla
como intrusos os dez homens armados que vêm interromper o sacrifício. Eles arvoram,
nos seus barretes de feltro, a insígnia verde-clara dos ahdath, a milícia urbana de Samarcanda. Ao vê-los, os agressores
afastaram-se de Khayyam; mas justificar a sua conduta, desataram a berrar,
tomando a multidão como testemunha; alquimista! Alquimista! Aos olhos das
autoridades, ser filósofo não é um crime; praticar a alquimia á passível de
morte. Alquimista! Este forasteiro é um alquimista! Mas o chefe de patrulha não
tenciona argumentar. Se este homem for de facto um alquimista, decide ele, é ao
grande juiz Abu Taher que o devemos conduzir». In Amir Masalouf,
Samarcanda, 1988, tradução de Paula Caetano, Editorial Presença, Marcador
Editora, 2015, ISBN 978-989-754-102-5.
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