quarta-feira, 20 de abril de 2016

O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval. Jacques le Goff. «A história do deserto, aqui e além, agora e logo, foi sempre feita de realidades espirituais e materiais misturadas entre si, de um vaivém constante entre o geográfico e o simbólico…»

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O Deserto-Floresta no Ocidente Medieval
«(…) Nestes inícios do monaquismo cristão não haverá que contrapor demasiado rigidamente deserto e cidade. É verdade que os monges que procuravam a solidão fugiam da cidade. Mas o afluxo de monges, a valorização dos oásis e das zonas subdesérticas transformaram com frequência o deserto em cidade. Uma expressão da Vida de Santo Antão, na sua tradução latina, tornou-se um topos da literatura monástica: desertum civitas, o deserto-cidade. Como mostrou Paul-Albert Février, no Ocidente latino da alta Idade Média os modelos urbanos da antiguidade tardia, ainda tão vivos, impuseram-se aos monges. O mosteiro tornou-se uma microcidade e, sobretudo, os grandes mestres do monaquismo latino realizaram na sua vida e no seu ensinamento uma espécie de equilíbrio pendular entre a cidade e o deserto. Foi esse o caso de S. Martinho, que dividiu a sua vida entre a solidão do mosteiro de Marmoutier e a sede episcopal de Tours, de João Cassiano, vindo dos desertos egípcios próximos da solidão insular de Lérins, em frente da cidade de Marselha; de Paulino, que veio estabelecer-se ao lado das relíquias de S. Félix, nas proximidades de Nola, e que teve de aceitar ir residir como bispo da cidade. Esta respiração alternada entre o retiro nos eremitérios e o apostolado urbano encontrá-la-emos também no franciscanismo.
Mas o deserto é também o lugar de encontro com Satanás e os demónios, se bem que este tema da espiritualidade oriental do deserto não tenha tido no Ocidente da alta Idade Média o mesmo sucesso que no Oriente. Euquério refere-se apenas de passagem às tentações do Inimigo que vagueia em vão em torno do eremitério como o lobo à volta do rebanho. O perigo que atacará o eremita ocidental no deserto é o tédio existencial e metafísico: accedia. O deserto insular foi ainda mais procurado pelos monges célticos e nórdicos. Eles escreveram um grande capítulo da antropologia histórica do deserto marítimo, dos desertos do mar e do frio. O mar substituiu para estes monges o deserto egípcio. S. Brendano, cujas peregrinações marítimas foram narradas por um livro de sucesso na Idade Média, Navigatio sancti Brendani, vai de ilha em ilha, encontrando monstros e coisas maravilhosas, evita a ilha do Inferno e aporta finalmente à ilha do Paraíso. Na vida de um destes monges errantes pelo Oceano, escrita nos derradeiros anos do século VI por um deles, Columba, diz-se que eles esperavam encontrar o deserto no mar inultrapassável (desertum in pelago intransmeabili invenire optantes).
Mas estes eremitas insulares e marítimos não serão mais do que a franja extrema e efémera dos marginais do deserto no Ocidente. Neste mundo temperado, sem grandes extensões desérticas e áridas, o deserto, o mesmo é dizer, a solidão, assumirá um aspecto absolutamente diferente, quase exactamente o contrário do deserto sob o aspecto da geografia física: será, a floresta. O itinerário do mais célebre desses monges irlandeses, Columbano (540-615), é exemplar. Em 575 faz-se ao mar, mas em direcção ao continente. Da Armórica passa à Gália. O rei da Borgonha, Gontrano, propõe-lhe que se estabeleça em Annegray, nos Vosgos. O sítio agrada-lhe, escreverá o seu biógrafo, Giona di Bobbio, por volta de 640, porque estava no meio de uma floresta: é um vasto deserto, uma áspera solidão, uma terra pedregosa. De Annegray e do mosteiro próximo de Luxeuil Columbano terá de afastar-se, escorraçado pelo rei Teodorico II, a pedido da sua terrível avó, Brunilde. Após uma longa peregrinação, o velho chega à Itália Setentrional e escolhe aí, em 613, um lugar isolado numa floresta: Bobbio. Para construir o mosteiro, o velho abade faz-se uma vez mais monge lenhador. A história, a lenda, de um outro santo irlandês, Rónan, que veio estabelecer-se na Bretanha continental, retoma os temas do deserto-floresta. Entra-se pelo..., deserto dentro e chega-se à floresta de Nemet (ou Nevet) na Cornualha. À força de milagres protege a vizinhança dos lobos. Mas suscita a cólera de Satanás, que, servindo-se de uma camponesa, a diabólica Kéban, acaba por expulsá-lo de lá. A história do deserto, aqui e além, agora e logo, foi sempre feita de realidades espirituais e materiais misturadas entre si, de um vaivém constante entre o geográfico e o simbólico, o imaginário e o económico, o social e o ideológico». In Jacques le Goff, Il meraviglioso e il quotidiano nell’occidente medievale, Gius, Laterza, 1983, Roma, O maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval, Edições 70, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-44-1563-5.

Cortesia de E70/JDACT