jdact
O Deserto-Floresta no Ocidente Medieval
«(…) Nestes inícios do monaquismo cristão não haverá que contrapor demasiado
rigidamente deserto e cidade. É verdade que os monges que procuravam a solidão fugiam
da cidade. Mas o afluxo de monges, a valorização dos oásis e das zonas
subdesérticas transformaram com frequência o deserto em cidade. Uma expressão da
Vida de Santo Antão, na sua tradução latina,
tornou-se um topos da literatura monástica: desertum
civitas, o deserto-cidade. Como mostrou Paul-Albert Février, no Ocidente latino
da alta Idade Média os modelos urbanos da antiguidade tardia, ainda tão vivos, impuseram-se
aos monges. O mosteiro tornou-se uma microcidade e, sobretudo, os grandes
mestres do monaquismo latino realizaram na sua vida e no seu ensinamento uma
espécie de equilíbrio pendular entre a cidade e o deserto. Foi esse o caso de S.
Martinho, que dividiu a sua vida entre a solidão do mosteiro de Marmoutier e a sede
episcopal de Tours, de João Cassiano, vindo dos desertos egípcios próximos da solidão
insular de Lérins, em frente da cidade de Marselha; de Paulino, que veio estabelecer-se
ao lado das relíquias de S. Félix, nas proximidades de Nola, e que teve de aceitar
ir residir como bispo da cidade. Esta respiração alternada entre o retiro nos eremitérios
e o apostolado urbano encontrá-la-emos também no franciscanismo.
Mas o deserto é também o lugar de encontro com Satanás e os demónios, se
bem que este tema da espiritualidade oriental do deserto não tenha tido no
Ocidente da alta Idade Média o mesmo sucesso que no Oriente. Euquério refere-se
apenas de passagem às tentações do Inimigo que vagueia em vão em torno do eremitério
como o lobo à volta do rebanho. O perigo que atacará o eremita ocidental no deserto
é o tédio existencial e metafísico: accedia.
O deserto insular foi ainda mais procurado pelos monges célticos e nórdicos.
Eles escreveram um grande capítulo da antropologia histórica do deserto marítimo,
dos desertos do mar e do frio. O mar substituiu para estes monges o deserto egípcio.
S. Brendano, cujas peregrinações marítimas foram narradas por um livro de
sucesso na Idade Média, Navigatio sancti
Brendani, vai de ilha em ilha, encontrando monstros e coisas maravilhosas, evita
a ilha do Inferno e aporta finalmente à ilha do Paraíso. Na vida de um destes
monges errantes pelo Oceano, escrita nos derradeiros anos do século VI por um deles,
Columba, diz-se que eles esperavam encontrar o deserto no mar inultrapassável
(desertum in pelago intransmeabili invenire
optantes).
Mas estes eremitas insulares e marítimos não serão mais do que a franja
extrema e efémera dos marginais do deserto no Ocidente. Neste mundo temperado, sem
grandes extensões desérticas e áridas, o deserto, o mesmo é dizer, a solidão, assumirá
um aspecto absolutamente diferente, quase exactamente o contrário do deserto
sob o aspecto da geografia física: será, a floresta.
O itinerário do mais célebre desses monges irlandeses, Columbano (540-615), é exemplar.
Em 575 faz-se ao mar, mas em direcção ao continente. Da Armórica passa à Gália.
O rei da Borgonha, Gontrano, propõe-lhe que se estabeleça em Annegray, nos Vosgos.
O sítio agrada-lhe, escreverá o seu biógrafo, Giona di Bobbio, por volta de 640,
porque estava no meio de uma floresta: é um vasto deserto, uma áspera solidão,
uma terra pedregosa. De Annegray e do mosteiro próximo de Luxeuil Columbano
terá de afastar-se, escorraçado pelo rei Teodorico II, a pedido da sua terrível
avó, Brunilde. Após uma longa peregrinação, o velho chega à Itália Setentrional
e escolhe aí, em 613, um lugar isolado numa floresta: Bobbio. Para construir o
mosteiro, o velho abade faz-se uma vez mais monge lenhador. A história, a
lenda, de um outro santo irlandês, Rónan, que veio estabelecer-se na Bretanha continental,
retoma os temas do deserto-floresta. Entra-se pelo..., deserto dentro e chega-se à floresta de Nemet (ou Nevet) na
Cornualha. À força de milagres protege a vizinhança dos lobos. Mas suscita a
cólera de Satanás, que, servindo-se de uma camponesa, a diabólica Kéban, acaba por
expulsá-lo de lá. A história do deserto, aqui e além, agora e logo, foi sempre feita
de realidades espirituais e materiais misturadas entre si, de um vaivém constante
entre o geográfico e o simbólico, o imaginário e o económico, o social e o ideológico».
In
Jacques le Goff, Il meraviglioso e il quotidiano nell’occidente medievale,
Gius, Laterza, 1983, Roma, O maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval,
Edições 70, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-44-1563-5.
Cortesia de E70/JDACT