O
caminho da Esperança. Catalunha. Dezembro de 1269
«Arnaldo
d’Elne mal pressentira o lento afrouxar do passo da sua montada, até que o som
metálico das ferraduras se fez ouvir contra o lajeado da calçada que os cónegos
de Santo Agostinho recentemente haviam mandado reparar. De facto, o velho
caminho já dificilmente suportava a passagem dos pesados carros que, pelo S. Miguel
de Setembro, subiam a ladeira com o produto das rendas das propriedades que o mosteiro
de S. Pedro detinha nas várzeas do Noguera e do Segre. Fora passagem de
exércitos e mercadores, no tempo em que as legiões de Roma, de longe,
controlavam os pastores indómitos das altas montanhas, que nunca haviam servido
outro amo que o por si escolhido nas reuniões de anciãos, quando o inimigo externo
se tornava comum. Assistira à chegada de hordas germânicas sedentas de ouro e de
terra fértil, que lhes garantisse o sustento. Participara no fluir das hostes com
estandartes verdes e crescente de prata, num vai e vem que lembrava o fluxo das
marés. Garantira o sucesso dos reinos que em seu torno se iam formando, espraiando-se
em direcção ao Sul, alçando a cruz e assentando mosteiros. Agora, chegara ao seu
limite, quando do empedrado das suas encostas apenas restava a recordação. Com
um gesto enérgico, o cavaleiro sacudiu o manto branco em que se envolvera ao longo
do caminho, para se proteger do vento cortante que descia dos cumes que se divisavam,
para norte, mas também dos pensamentos que o oprimiam como a neblina que,
lentamente, se insinuava pelo vale, à medida que o sol de Inverno se escondia
para os lados de Tossal.
Desperto
do torpor que o passo manso do seu velho Musa,
eterno companheiro de jornadas e campanhas, acentuara, distinguia agora claramente
o antigo castelo de Ponts e a acolhedora silhueta da colegiada de S. Pedro. Aí,
junto à torre octogonal, tinha garantida uma refeição quente e o calor do fogo que
tanto protegia contra o frio do corpo como da alma, bem mais terrífico este que
aquele. Nas suas longas andanças, vira já sarar alguns peregrinos enregelados e
perdidos nos altos caminhos que conduziam a Foix e a Perpignan, mas nunca conseguira
salvar homem que deixasse entrar o frio na alma, aquele que transforma em gelo seco
toda a esperança de viver e se torna imune ao consolo da palavra. No fundo, sentia
um ardente desejo, quase ansiedade, pela conversa com o bom e velho frei Gil, que
adivinhava lhe acompanharia o sorver da malga de caldo, enquanto as últimas brasas
não adormecessem, para que lhe aliviasse o peso que o atormentava desde que,
manhã cedo, franqueara a porta do castelo da Comenda de Gardeny.
Mas,
primeiro, devia garantir as comodidades do corpo, do seu e do de Musa, que as treze léguas de caminhada pesavam
a ambos. Garantida uma boa cama de palha nova na estrebaria e uma farta ração de
aveia na manjedoura, estava frei Arnaldo em condições de tratar de si, parcamente,
como era seu costume diário. Sempre que não necessitava de energia redobrada para
empregar em combate, bastavam-lhe duas refeições diárias. Uma pela hora Terça, geralmente composta por um naco
de pão e algum conduto, bem regada com água fresca do poço. À hora de Vésperas, uma simples malga de caldo bem
quente, onde cozera um pedaço de toucinho, se o calendário permitisse tal iguaria.
Tudo decorreu como previra. Mal acabava de sorver o último gole da tigela de sopa,
quando frei Gil se aproximou do lume que ardia nas lajes da sala principal da hospedaria,
sempre aberta a cavaleiros ou gente nobre e endinheirada, apartada dos simples
caminhantes e peregrinos abrigados pelo mesmo tecto que acolhia os animais, a cujo
bafo se aqueciam, em cena que recordava o presépio do menino que S. Francisco recriara
em Assis. Frei Gil entrou na sala com o seu passo lento e o eterno rosto de ar cansado,
onde apenas o brilho dos olhos fazia adivinhar a ternura que lhe derretia o
coração. Com as cãs, frei Gil vira crescer as preocupações que o acompanhavam desde
que, na juventude, uns belos olhos negros, de pé descalço e silício na cintura,
lhe haviam posto fogo no corpo e ideias ígneas na alma. Eram tempos em que
todos os caminhos vindos da terra dos Francos se enchiam de estranhos homens e mulheres,
quase sempre com a palavra de Deus na ponta da língua, como se a houvessem bebido
na fonte, pregando a singeleza e o trabalho honesto, sem amos nem servos, deixando
atrás um rasto de fogueiras e destruição que anunciavam o Armagedão, antecedendo
uma nova era que um certo frei Joaquim previra, lá, para os confins da
Calábria. Frei Gil sentia nas próprias entranhas que a riqueza, entesourada nos
celeiros e cofres de S. Pedro, era a negação dos textos evangélicos, nos quais encontrava
o único lenitivo para as dúvidas e incertezas que a idade ia acumulando, ao mesmo
tempo que destruía o pecúlio espiritual arrecadado ao longo de anos de orações e
meditação». In António Balcão Vicente, O Templário d’El-Rei, Ésquilo, Lisboa, 2010,
ISBN 978-989-809-288-5.
Cortesia
de Ésquilo/JDACT