Pinhel,
21 de Outubro de 1955
«(…)
Ah, sim, lá conhecer Portugal conheço-o eu! Não houve aceno de monte ou de planície
a que não respondesse. Subi a todas as serras e calcurreei todos os vales desta
pátria. Por isso, quando chegar a hora da grande jogada, tenho um trunfo a meu favor
que há-de desconcertar a morte: a íntima certeza de que não vou estranhar a
cama, seja qual for o sítio onde me enterrem.
Souro
Pires, 22 de Outubro de 1955
Às
vezes chego a pensar se não será a nossa vocação de arqueólogos que vai
sistematicamente reduzindo Portugal a ruinas.
S.
Martinho de Anta, 29 de Outubro de 1955
O
solar da família, térreo, de telha vã, encimado pelo seu brasão de armas
esquartelado, com enxadões em todos os campos… Foi desta realidade que parti, e
é a esta realidade que regresso sempre, por mais voltas que dê nos caminhos da
vida. É uma certeza de marco com testemunhas, que nunca me deixa desorientado
quando quero avivar as estremas da alma. Basta escavar um pouco a crosta da
aparência, e aí estou eu na matriz, confrontado. Há tempos, em Lovios, no Gerês
espanhol, depois de conversar com vários habitantes da povoação, interessei-me
por um tumor a despontar no pescoço de uma velhota. É doutor…, informou o meu
companheiro. Que doutor! Ele é como nós!... E sou. Tudo, menos trânsfuga da
minha classe. Nasci povo, povo continuo, e povo quero morrer. A burguesia
compra-me algum suor e alguns livros, mas é confiado na subversão do seu poder
que vivo. Aliás, quer profissionalmente, quer literariamente, ainda é quando
ponho as mãos e molho a pena nas chagas e no sangue dos meus que dou o melhor
de mim. Foi na clínica rural que me senti médico a sério, e cuido que as coisas
mais válidas que escrevi sabem à terra nativa que trago agarrada aos pés. Envergonhado
de representar o ingrato papel de cronista dum mundo que nem me pode ler,
como um dia confessei, é nele que acredito, é ele que me inspira e é por ele
que luto. Conheço-lhe os defeitos, sei que são falsíssimos os quadros bucólicos
das moleirinhas líricas e dos pastores de avena, e nem me quero lembrar dos
torcegões que é capaz de dar à verdade a manha dum honrado cavador… Mas, além
de ser uma tolice esperar que a condição humana faça distinções, procuro
compreender a causa de certas dessas mazelas. Melhor fora que milénios de
servidão, de fome, de ignorância e de logro não criassem desconfiança, inveja,
mesquinhez e aviltamento! Resta saber se, iluminado por outro sol, o panorama
seria o mesmo, e se, apesar de tudo, não é o único que dá esperanças... Pelo
que me diz respeito, apenas a olhá-lo consigo descortinar sentido e futuro à vida.
E quando aqui chego, embrulhado na cultura e no diploma, que, de resto, só me ajudaram
a consciencializar o meu caso, é o bilhete de identidade passado pela tal camponesa
galega que me deixa bater sem constrangimento à porta do ninho. Nem o dono que me
manda entrar, nem os vizinhos que, curiosos, espreitam dos seus buracos, me podem
estranhar. Sou como eles…
S.
Martinho de Anta, 30 de Outubro de 1955
Tatuagem
Um verso
apenas, mas que fique impresso
na morena
epiderme
do
teu corpo maciço;
um verso
agradecido
à universal
beleza
do teu
rosto redondo,
infatigavelmente
variado;
um verso
branco e puro
de rendido
louvor
à serena
ironia
com que
deixas brincar no teu regaço
a inquietação,
e devolves
o eco
de
cada grito
à boca
enfurecida,
Terra,
pátria da vida!
Eva que
o sol, fecunda do infinito!»
In
Miguel Torga, Diário VIII, Coimbra, 1959, 1999, Publicações Dom Quixote.
Cortesia
DQuixote/JDACT