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O Congo
«(…) Poderei tomar um banho, hoje?,
perguntou ele, antes de entrar. O obeso carcereiro negou com a cabeça,
olhando-o nos olhos com a mesma repugnância que Roger tinha notado no olhar do
estagiário. Não poderá tomar banho até ao dia da execução, disse o xerife,
saboreando cada palavra. E, nesse dia, só se for a sua última vontade. Outros,
em vez do banho, preferem uma boa refeição. Um mau negócio para mr. Ellis,
porque então, quando sentem a corda, cagam-se. E deixam o lugar feito uma porcaria.
Mr. Ellis é o verdugo, para o caso de não saber. Quando sentiu a porta
fechar-se arrás de si, foi deitar-se de barriga para cima no pequeno catre.
Fechou os olhos. Teria sido bom sentir a água fria daquele cano a arrepiar-lhe
a pele e a azulá-la de frio. Na prisão de Pentonville, os réus, com excepção dos
condenados à morte, podiam tomar banho com sabão uma vez por semana naquele
jorro de água fria. E as condições das celas eram sofríveis. Em contrapartida,
recordou com um calafrio a sujidade do cárcere de Brixton, onde se tinha
enchido de piolhos e pulgas que pululavam no colchão do seu catre e o tinham
coberto de picadas nas costas, nas pernas e nos braços. Procurava pensar nisso,
mas voltavam várias vezes à sua memória a cara descontente e a voz odiosa do
louro estagiário ataviado como um janota que maitre Gavan Duffy lhe tinha enviado em vez de vir ele em pessoa dar-lhe
as más notícias.
Do
seu nascimento, a 1 de Setembro de 1864, em Doyle's Cottage, Lawson Terrace, no
subúrbio Sandycove de Dublin, não se lembrava de nada, é claro. Embora sempre tenha
sabido que tinha sido dado à luz na capital da Irlanda, uma boa parte da sua vida
deu como assente o que o seu pai, o capitão Roger Casement, que tinha servido oito
anos com distinção no Terceiro Regimento de Dragões Ligeiros, na Índia, lhe inculcou;
que o seu verdadeiro berço era o condado de Antrim, no coração do Ulster, na
Irlanda protestante e pró-britânica, onde a linhagem dos Casement estava estabelecida
desde o século XVIII. Roger foi criado e educado como anglicano da Igreja Irlandesa,
tal como os seus irmãos Agnes (Nina), Charles e Tom, os três mais velhos que ele,
mas intuiu, ainda antes de ter o uso da razão, que em matéria de religião nem tudo
na sua família
era tão
harmonioso como no resto. Até para um menino de poucos anos era impossível não reparar
que a mãe, quando estava com as suas irmãs e primos da Escócia, agia de maneira
que parecia esconder alguma coisa. Já adolescente, descobriria que, Anne
Jephson, embora aparentemente, se tinha convertido ao protestantismo para casar
com o seu pai, e às escondidas do marido continuava a ser católica (papista
teria dito o capitão Casement), confessando-se, ouvindo missa e comungando, e, no
mais cioso dos segredos, ele próprio tinha sido baptizado como católico quando fez
quatro anos, durante uma viagem de férias que ele e os seus irmãos fizeram com a
mãe a Rhyl, no Norte do País de Gales, e casa das rias e tios maternos que lá viviam.
Naqueles
anos. em Dublin, ou nos períodos que passaram em Londres e em Jersey, Roger não
lhe interessava nada a religião, ainda que, para não desgostar o pai, durante o
ofício dominical rezasse, cantasse e seguisse o serviço com respeito. A mãe havia-lhe
dado aulas de piano e tinha uma voz clara e temperada que costumava granjear-lhe
aplausos nas reuniões familiares em que entoava velhas baladas irlandesas. O que
verdadeiramente lhe interessava naquele tempo eram as histórias que, quando estava
bem-disposto, o capitão Casement lhe contava a ele e aos seus irmãos. Histórias
da Índia e do Afeganistão, sobretudo as suas batalhas contra os Afegãos e os Siques.
Aqueles nomes e paisagens exóticos, aquelas viagens atravessando florestas e montanhas
que escondiam tesouros, feras, alimárias, povos antiquíssimos de estranhos
costumes, deuses bárbaros, disparavam-lhe a imaginação. Os seus irmãos, às vezes,
aborreciam-se com aqueles relatos, mas o pequeno Roger poderia ter passado horas
e dias a escutar as aventuras do seu pai nas remotas fronteiras do Império». In
Mario Vargas Llosa, O Sonho do Celta, 2010, tradução de Cristina Rodriguez,
Quetzal Editores, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-564-919-0.
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