quinta-feira, 7 de abril de 2016

O Ano da Morte de Ricardo Reis. José Saramago. «É para o hotel que Ricardo Reis vai encaminhando os passos. Agora mesmo se lembrou do quarto onde dormiu a sua primeira noite de filho pródigo, sob um paterno tecto, lembrou-se dele como da sua própria casa»

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«Trabalhar com nobreza, esperar com sinceridade, enternecer-se com o homem, esta é a verdadeira filosofia». In Fernando Pessoa

«(…) A rua está calçada de pedra grossa, irregular, é um basalto quase preto onde saltam os rodados metálicos das carroças e onde, em tempo seco, não este, ferem lume as ferraduras das muares quando o arrasto da carga passa as marcas e as forças. Hoje não há desses bojadores, só outros de menos aparato, como estarem descarregando dois homens sacas de feijão que, pelo vulto, não pesam menos de sessenta quilos, ou serão litros, como se deve dizer quando se trata destas e doutras sementes, passando então os quilos a menos do que os ditos, porque sendo o feijão, de sua íntima natureza, mais ligeiro, cada litro seu orça por setecentos e cinquenta grama; termo médio, oxalá tenham os medidores atendido a estas considerações de peso e massa quando encheram os sacos.
É para o hotel que Ricardo Reis vai encaminhando os passos. Agora mesmo se lembrou do quarto onde dormiu a sua primeira noite de filho pródigo, sob um paterno tecto, lembrou-se dele como da sua própria casa, mas não a do Rio de Janeiro, não nenhuma das outras em que habitou, no Porto, onde sabemos que nasceu, aqui nesta cidade de Lisboa, onde morava antes de se embarcar para o exílio brasileiro, nenhuma dessas, e contudo tinham sido casas verdadeiras, estranho sinal, e de quê, estar um homem lembrando-se do seu quarto de hotel como de casa que sua fosse, e sentir esta inquietação, este desassossego, há tanto tempo por fora, desde manhã cedo, vou já, vou já. Dominou a tentação de chamar um táxi, deixou seguir um carro eléctrico que o deixaria quase à porta, conseguiu, enfim, reprimir a ansiedade absurda, obrigar-se a ser apenas uma pessoa qualquer que regressa a casa, mesmo hotel sendo, sem pressas, e também sem escusadas demoras, embora não tenha ninguém à sua espera. Provavelmente verá a rapariga da mão paralisada, logo à noite, na sala de jantar, é uma probabilidade, como também o são o homem gordo, o magro de luto, as crianças pálidas e seus pletóricos pais, quem sabe que outros hóspedes, gentes misteriosas que chegaram do desconhecido e da bruma, e pensando neles sentiu um bom calor no coração, um íntimo conforto, amai-vos uns aos outros, assim fora dito um dia, e era tempo de começar. O vento soprava com força, encanado, na Rua do Arsenal, mas não chovia, somente sobre os passeios caíam alguns grossos pingos sacudidos dos beirais. Talvez que o tempo melhore a partir de hoje, esta invernia não pode durar sempre, Há dois meses que o céu anda a desfazer-se em água, foi o que disse ontem o motorista, e disse-o como quem já não acredita em dias melhores.
Zumbiu brevemente o besouro da porta, e era como se lhe estivessem dando as boas-vindas o pajem italiano, o íngreme lanço de escada, o Pimenta lá no alto a espreitar, agora esperando deferente e minucioso, um pouco dobrado de espinha, ou será da continuação dos carregos, Boas tardes, senhor doutor, veio também ao patamar o gerente Salvador, dizendo o mesmo com mais apurada dicção, a ambos respondeu Ricardo Reis, não havia ali gerente, moço e doutor, apenas três pessoas que sorriem umas às outras, contentes por terem voltado a encontrar-se depois de tanto tempo, desde esta manhã, imagine-se, e que saudades Deus meu. Quando Ricardo Reis entrou no quarto e viu como tudo estava perfeitamente arrumado, a colcha da cama esticada, o lavatório rebrilhante, o espelho sem uma sombra, salvo o picado da antiguidade, suspirou de satisfação. Descalçou-se, mudou de roupa, enfiou uns sapatos leves, de interior, entreabriu uma das janelas, gestos de quem regressou a casa e gosta de estar nela, depois sentou-se na poltrona, a descansar. Foi como se tivesse caído em si, isto é, para dentro de si caindo, uma queda rápida, violenta». In José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Editorial Caminho, Lisboa, 1995, ISBN 972-21-0286-9

Cortesia de Caminho/JDACT