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«(…) Não me
abandones. Não sei que vida posso ter sem ti, disse-me. Amava a música. Era uma
paixão e uma arma de conquista. No convento, sabia-se que uma freira tinha
caído nas graças d'Ele quando se ouvia a orquestra e tocar perto da sua cela.
Depois de termos terminado, foram muitas as vezes que ouvi tal música, e o que
antes me parecia uma harmonia celestial era apenas um rugido triste de um amor
que iria terminar. Não o meu, que esse já não existia para Ele. Mas o amor que
el-rei vivia naquele momento e que iria terminar, porque todos terminavam. Sentia
pena das raparigas que iriam sofrer. Eu sofri, mas fui a primeira a quem Ele
trouxe música.
Dizem que el-rei
proibiu a ópera porque pensou que Deus lhe paralisara metade do corpo por ouvir
música profana. Mais mentiras. El-rei conheceu a ópera por causa de Maria Ana e
proibiu-a por minha causa. Ouvi-la sem mim tornou-se-lhe intolerável.
Nós, as irmãs, éramos
inseparáveis. O pai trabalhava muitas horas e deixava-nos entregues às nossas
brincadeiras, A Luz, mais aventureira, calcorreava as ruas de Lisboa, da nossa
casa à Mouraria, só para ver dançar lundum, a dança que veio com os
negros de África. O rei não gostava de ritmos primitivos. O rei só gabava o que
se dançava nas cortes europeias, principalmente na de Luís XIV. Nesta altura,
eu pouco sabia de cultura e nem tinha começado a minha educação. Acompanhava a Luz
a uma casa escondida num beco, onde escravas rebolavam traseiros e ombros, para
cima e para baixo, a comandar a provocação aos homens. Morria de vergonha,
perguntava-me se seria capaz de dançar daquela maneira ousada e sensual. Usavam
saias compridas e corpetes justos, rodopiavam devagar com as mãos a agarrarem o
tecido que caía até aos pés. Sacudiam as ancas. Quando a música acelerava,
entravam os homens num uivo, colhiam-nas por trás, envolvidos na confusão, a mão
esquerda dela num ângulo recto a tocar na orelha dele, primeiro, depois dobrada
até ao cimo da cabeça. Ele sem mexer as mãos, para a frente e para trás, a
música a intrometer-se no sangue cada vez mais depressa. A Luz dizia que os
negros tinham a dança no sangue. Duas criadas que me serviram no tempo do rei
eram negros. Quando estava muito triste ou enfurecida, obrigava-as a dançar lundum
sem música, não sei se para recordar a felicidade que não sentia, se para
castigá-las pelos pecados praticados, se por inveja de as ver dançar para longe
dali, noutro mundo, tão erótico e intenso. Se tivesse conhecido o segredo dos corpos
que falam sem palavras, Ele não teria partido. Agora compreendo o tonto enredo
dos meus pensamentos. Não me arrependo da maldade que fiz às raparigas. Fiz
maldades a muitas pessoas. Também fui alvo de muitas maldades. Perdoados
seremos todos.
El-rei preferia
minuetes. Leocádia não gostava da dança dos negros. Dizia que eram movimentos
grosseiros, típicos de gente selvagem. Eu e a Luz ríamos sempre que ouvíamos a
pequenita falar como gente grande. Mas o que sabes tu dos negros?, dizia a Luz.
Sei. Tu é que não queres que o pai saiba que estamos aqui a ver este
espectáculo degradante. Era a altura em que eu levantava a mão e dava uma
bofetada na Leocádia. Sempre fui a mais alta das três, a mais forte. Antes do
convento, tinha vestidos meus. Os da Luz só serviam à Leocádia. Tenho costas largas,
coxas grossas, pernas fortes. A minha pele é morena, o meu cabelo é o meu
grande orgulho. Não me considero bonita. Os meus olhos são enormes e estranhos.
El-rei dizia que continham um reino dentro. João V via em mim uma beleza que eu
nunca consegui encontrar. Como não és bonita? Os homens perdem-se por mulheres
feias, porventura? A Luz via também.
O tempo ensinou-me
que os homens gostam das mulheres que os amam. Não sou bonita mas há alguma
coisa em mim que diz que sei amar. Sempre houve e eu desconhecia. Foi o que
atraiu o rei, que eu nada soubesse de sentimentos. João deu-me a provar
distâncias que nem sonhava. Aguardente água que arde. Queimava a garganta e
incendiava a alma. Do que eu mais gostava era de me entontecer com el-rei, rir
com el-rei, cantar com el-rei, enciumar-me, gritar, discutir com tal força que
só os beijos me podiam calar. Do que eu mais gostava era de fazer as pazes com
el-rei, na cama que el-rei mandou fazer para mim». In Patrícia Muller,
Madre Paula, Edições ASA II, 2014, ISBN 978-989-232-783-9.
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