segunda-feira, 4 de abril de 2016

Escalas do Levante. Amin Maalouf. «O homem estava perturbado. Melancólico, desvairado, como que aturdido. Já aniquilado. Alimentara grandes sonhos para o Império, sonhos de progresso, de grandeza recuperada»

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«(…) O que é que o levou a essa atitude? É difícil dizer. Mas é verdade que ele conheceu, nos seus primeiros anos, certas circunstâncias que podem ter alimentado o seu rancor... - Suponho que vinha de um meio desfavorecido... Pobre, quer o senhor dizer? Aí, engana-se, meu jovem amigo, engana-se completamente. A nossa família... Ao pronunciar estas palavras, baixou os olhos, como envergonhado. Mas acho que ele queria antes dissimular o seu orgulho. Sim, voltando hoje a pensar nisso, estou persuadido, era do seu orgulho que tinha vergonha quando me disse: venho de uma família que durante muito tempo governou o Oriente.
Nesse dia, falámos, falámos até alta noite. Primeiro no café; depois num passeio pela cidade iluminada; finalmente à noite, sentados à mesa de uma cervejaria, na Praça da Bastilha. Em que preciso momento tive eu a ideia de o fazer contar toda a sua vida, de ponta a ponta? Desde as primeiras palavras que trocámos, parece-me, fiquei seduzido por aquela maneira que ele tinha de evocar certos episódios, em meu entender notáveis, dando a impressão de querer desculpar-se. Essa modéstia não fingida era-me extremamente simpática. Tal como o era a fragilidade que transparecia em cada um dos seus sorrisos; e também no seu olhar, que mendigava a minha aprovação e se inquietava com os meus raros gestos de cansaço; tal como nas suas mãos que continuamente volteavam, rodopiavam, ou então entrelaçavam-se uma na outra, mãos compridas e lisas que se adivinhava nunca terem trabalhado, e que ele nem sempre sabia para que poderiam servir-lhe. Seria fastidioso dizer como obtive a sua concordância. Fastidioso e enganador, porque hoje sei que se ele aceitou prestar-se ao jogo, foi por uma razão que nada tem a ver com os meus argumentos ou as minhas habilidades.
Explico-me: essa famosa coisa que ele tinha que esperar quatro dias, e sobre a qual eu não ousara interrogá-lo, atormentava-o sem parar; não queria pensar nela, e ao mesmo tempo sentia-se incapaz de pensar noutra coisa. Fora esse medo de se encontrar a sós consigo mesmo, que, mais do que a nostalgia, o levara a percorrer assim as ruas consagradas aos heróis da Resistência. O encontro comigo oferecia-lhe um derivativo mais eficaz ainda. Eu ia ocupá-lo inteiramente ao longo desses dias de espera, sacudi-lo, fazer-lhe cócegas, inquietá-lo, obrigando-o a reviver hora a hora o seu passado, em vez de ruminar o futuro.
Deambulou em silêncio durante dois longos minutos. Depois respondeu com uma pergunta. Tem a certeza de que a vida de um homem começa com o nascimento? Não esperava resposta. Era simplesmente uma maneira de introduzir o seu relato. Deixei-lhe por isso a palavra, prometendo a mim mesmo intervir o menos possível. A minha vida começou, disse, meio século antes do meu nascimento, num quarto que nunca visitei, nas margens do Bósforo. Aconteceu um drama, soou um grito, propagou-se uma onda de loucura que se não interromperia nunca mais. De modo que quando eu vim ao mundo, a minha vida estava já largamente iniciada. Istambul tinha conhecido certos acontecimentos. Graves para os contemporâneos; irrisórios aos nossos olhos. Um monarca caiu, substituído pelo sobrinho. Meu pai falou-me disso umas vinte vezes, citando-me nomes, datas... Eu esqueci tudo, ou quase. Pouco importa, de resto. Para a minha própria história, só esse grito, esse urro lançado por uma jovem mulher naquele dia, conserva alguma importância.
O soberano derrubado foi colocado com residência fixa nos arredores da capital. Proibido de sair, proibido de receber visitas, salvo prévia autorização. Separado dos seus, com excepção de quatro criados. O homem estava perturbado. Melancólico, desvairado, como que aturdido. Já aniquilado. Alimentara grandes sonhos para o Império, sonhos de progresso, de grandeza recuperada; julgava-se amado por todos, não compreendia aquele silêncio que o rodeava. Repisava as suas amarguras: não soubera escolher os seus próximos, todos eles o tinham aconselhado mal, tinham abusado das suas liberalidades; sim, todos o tinham traído!» In Amin Maalouf, Escalas do Levante, Difel 82, Algés, 1997, ISBN 972-290-355-1.

Cortesia de Difel/JDACT