«(…)
Toda a gente a dizer-me que tinhas morrido, que nunca ninguém mais te vira, que
botasse luto e te fizesse os responsos... e o coração a dizer-me: não, o meu
homem é vivo. Se não fosse vivo, a alma tinha-se botado cá do outro mundo a
dizer-mo!, lambuzava-o com os grandes beiços amorosos, húmidos como uma esponja
empapada de água salgada. Está bem, mulher, está bem! Deixa-me… Olha que me
esganas... O pai? O pai está rijo e fero. Ia fazer-lhe outra pergunta, quando
pela espalda desabou sobre ele, rosto, lábios, cabelos de que uma melena fugia
para a testa, uma haste florida que adivinhou ser Jorgina. Ah, pois não tinha
ela também os seus direitos? Tinha e ainda os não usara. Um minuto ele a vira meio
indecisa. Notou que se pusera a identificá-lo e não quis interrompê-la na
operação. Então seu pai era aquele homem de ar exótico, lurido do clima, tocado
na figadeira, com um traje diferente ao da terra, sarja azul tão lustrosa que
lhe devolvia a tinta dos olhos, relógio de prata em pulseira de oiro, sapatos
amarelos, esta espécie de sapatos meio pantufos, que parecem botas de elástico
aparadas por baixo do tornozelo, e ele comprara em Asunción?! Por uma nesga,
dir-se-ia, da consciência seguira todo o desdobre da fita sentimental. E, zás,
vencendo o acanhamento, eis que ela se lhe atirava ao pescoço. Sorrindo à
amorosa freima, Manuel Louvadeus apenas sabia dizer-lhe: que moça você está!
Que moça! Com quem se parecia? Com quem se pode parecer a Primavera...?
Lembrava-lhe, fragrante e risoteira, a flor dum cacto, de certos cactos martirizados
dos chapadões incandescidos, que desatam numa flor tão bonita que fazem pasmar
os ares e chamam todos os moscardos à volta. Que moça você está!... Este é o
mano?
O mano
tinha posto a tigela na pilheira e esperava de pé, os braços a escorrer pelas
ilhargas, que o pai se dignasse deitar-lhe os olhos. Mas já ele erguia as mãos:
a bênção, senhor pai... Manuel Louvadeus enterneceu-se com aquela prática à
antiga da rendição filial e, ao mesmo tempo que admirava a valente racha,
cobria-lhe a cabeça com a mão, olhos embaciados de lágrimas, não achando outra
palavra: seu capoeira! O avô?, perguntou-1he pela segunda vez, ao cabo da
grande pausa que se seguiu. O avô está rijo e fero, respondeu ele, repisando as
palavras da mãe. Já não é criança...! A exclamação diluiu-se no silêncio, sem
eco, desprovida de sentido temporal. Olhavam muito estranhos uns para os
outros, ele possuído da estupefacção involuntária de se ver ali e de os ver, ao
contrário do resto, bem mudados, eles da sua imprevista e surpreendente
presença. A candeia, bafejada pela aragem que se coava da telha-vã, passeava
deste para aquele o seu espectro facecioso, carregando-lhes as feições. Foi ao
envelhecer mais o pai, que Jaime acordou: pois não, mas é como se fosse. Entrou
há muito na casa dos setenta. Olhe que é ele que faz a lavoira quase toda da
Rochambana. Eu mal lá meto o arado. Ainda hoje pega dum saco de dez alqueires
pela boca, dá-lhe o balanço, e atira com ele para as costas.
Mas
sempre aflito de génio, interpôs Jorgina. Quer saber, senhor pai? Doía-lhe um
queixal. Em vez de ir ao barbeiro que lho tirasse, não senhor, atou a ponta
duma guita a um prego, outra ponta ao dente e, zás, deu tal safanão, que lá o
botou fora. Foi o primeiro. Tinha raízes que nem uma giesta! Fartou-se de deitar
sangue. Vimos modo de não haver nada que lho vedasse… Homens assim estão-se a
acabar!, proferiu Manuel Louvadeus. Já não quero que haja-tornou o filho. E
correr? Outro dia, pelas neves, atirou a uma lebre. Partiu-lhe a perna. Pois
deitou-se atrás dela e foi apanhá-la meia légua mais longe. Dizia o Caxarreto
caçador: às vezes as lebres com uma perna partida até escapam aos cães. Um
homem danado! Lá está para a Rochambana... Sózinho...?» In Aquilino Ribeiro, Quando os
Lobos Uivam, Libraria Bertrand, Lisboa, 1958, Arquivo Nacional da Torre do
Tombo.
Cortesia
de LBertrand/JDACT