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Os infantes (instigados pelo seu meio-irmão Afonso, conde de Barcelos), todavia,
não se deram por satisfeitos. Contou-me Henrique que eles achavam que festas e folguedos
eram coisas mais adequadas a mercadores e a filhos de cidadãos, e decidiram propor
ao pai um projecto muito mais ambicioso. Naquele dia 24 de Julho de 1415, a bordo
das naus e das galés que se preparavam para zarpar, os infantes recordavam
gostosamente a dificuldade que tinham tido para convencer João I a armá-los cavaleiros
na sequência de um aparatoso feito de armas. Felizmente, o vedor da fazenda do
rei, João Afonso Alenquer, tivera a ideia de lhes propor um bom projecto: por que
não atacar Ceuta, aonde o vedor enviara um criado seu resgatar alguns cativos e
que, por isso, sabia ser uma cidade grande e rica, o que vinha mesmo a calhar para
o reforço do tesouro régio, que vivia momentos de aflição?
Segundo
Henrique, o monarca começou por se rir da ideia, apesar de os filhos frisarem que
o projecto constituiria grande serviço de Deus, acarretaria uma honra que só a guerra
ofensiva pode conferir e permitiria armá-los cavaleiros com a dignidade necessária.
O pai teve dúvidas e mandou chamar dois colaboradores próximos (frei João Xira e
Vasco Pereira), juntamente com outros letrados e pessoas de quem se fiava, para
se aconselhar. A resposta veio célere: o plano era meritório, pois o objectivo da
paz não tinha de se aplicar às relações com gentes de outras crenças; pelo contrário,
o exercício das armas pelos cristãos é especialmente louvado se for praticado contra
os infiéis. Mesmo assim, João I hesitava, face à dimensão do projeto: onde é que
se iria buscar o dinheiro, os barcos e os homens de armas indispensáveis a uma tal
empresa do outro lado do mar? E como manter a praça após uma eventual conquista?
E seria que os castelhanos, depois de conquistarem Granada, quereriam desforrar-se
das humilhações sofridas em Portugal entre 1383 e 1411, atacando Ceuta? Em síntese:
o melhor era abandonar a ideia.
Os
infantes, todavia, não se deram por vencidos e depressa voltaram à carga. Quanto
ao dinheiro, alegaram que se podia comprar bens aos mercadores portugueses a
preço de custo e revendê-los depois no estrangeiro, obtendo com isso bons ganhos
em metal precioso, com o que se poderia cunhar moeda a câmbios favoráveis; explicaram
que uma gestão mais rigorosa das rendas da Coroa permitiria eliminar despesas supérfluas;
e garantiram que muitos dos notáveis do reino conseguiriam assegurar, pelos seus
próprios meios, os preparativos expedicionários das suas comitivas; além disso,
o que o monarca pouparia nas sumptuosas festas que pensara organizar já daria para
uma boa parte da viagem; quanto ao resto, não seria a primeira vez que o pai se
metia numa grande e arriscada aventura sem ter ainda a certeza dos meios
financeiros para a concluir...
No que
dizia respeito aos navios, Pedro e Henrique contaram-me que responderam ao pai que
se poderiam fretar nas costas da Galiza e da Biscaia, na Alemanha e em Inglaterra;
se os armadores dessas paragens costumavam vir de boa vontade ao frete do sal, do
azeite e dos vinhos, não deixariam de acorrer também para o transporte de tropas;
além disso, podia-se reparar algumas galés portuguesas e mandar construir outras
de novo, e mobilizar desde já as naus para que se preparassem; à medida que a notícia
dos preparativos corresse por essa Europa fora, era provável que mais armadores
estrangeiros se quisessem juntar à empresa. Gente de armas também não faltaria,
mesmo não contando com aquela que teria de ficar a guardar as fronteiras, ainda
que - com a paz com Castela recentemente assinada, não fosse nada provável que
dona Catarina e Fernando quisessem violar os tratos.
O rei
ficou convencido e, apesar dos riscos, decidiu aprovar a expedição, tanto mais que
percebia a grande vantagem de desviar os ímpetos bélicos dos cavaleiros das rixas
internas ou dos conflitos com Castela para o Norte de África, e isso, só por
si, justificava a despesa que se viesse a fazer; e, quanto à manutenção da
praça, logo se veria, seria o que Deus quisesse! O monarca sentia também que
uma grande operação contra os muçulmanos mereceria a aprovação e o elogio da Santa
Sé e da cristandade em geral e que isso reforçaria a sua autoridade como chefe de
uma nova dinastia, que chegara ao trono na sequência de uma árdua disputa
interna e com Castela. Depois, se a missão fosse bem-sucedida, talvez o Algarve
ficasse mais aliviado do corso e da pirataria muçulmanas, já, que Portugal passaria
a ter também uma palavra a dizer no controlo do estreito (de Gibraltar), numa altura
em que Tarifa e Algeciras estavam por Castela, Gibraltar tinha a tutela de Granada
e Ceuta se encontrava nas mãos da dinastia dos merínidas de Fez. Constava até que
esta dinastia, que chegara ao poder em Marrocos na segunda metade do século XIII',
se encontrava bastante enfraquecida por divergências internas, o que decerto
dificultaria o socorro a uma cidade de que João I ouvira já gabar o artesanato e,
sobretudo, o comércio por mar (com cidades italianas como Génova, Pisa ou Veneza,
mas também com a França e com os reinos peninsulares de Castela e Aragão) e por
terra o criado do vedor João Afonso explicara na corte que em Ceuta, em resultado
da circulação das caravanas que vinham de outras regiões do Norte de África, se
podia comprar escravos, cavalos, couros, peles, tapetes, lã e coral de altíssima
qualidade, para além de cereais, açúcar, frutos secos e peixe salgado, podendo ali
vender-se panos, pássaros de caça, metais, tecidos, especiarias, vinho, madeiras
e armas, entre outros produtos». In João Gouveia Monteiro e António Martins
Costa, 1415, A Conquista de Ceuta, Manuscrito, 2015, ISBN 978-989-881-804-1.
Cortesia
de Manuscrito/JDACT