«Alguém
terá de lhe emprestar as palavras, porque as desconhece, mas se lhas tivessem
ensinado seria incapaz de dizê-las, estonteado pelo remoinho, a vida a desfilar
em ondas de desespero, ocasiões falhadas, sempre ele o que perde, a sofrer envergonhado,
o que baixa os olhos e até de si próprio tem de fugir. Quando pensa no que ficou
para trás deveria usar o passado em vez do presente, mas pouco adianta que os verbos
se conjuguem, o medo dá-lhe do tempo uma noção onde se funde o que foi e o que é,
o que viu acontecer e as vezes que perdeu, horas sofre em que o garoto e o homem
quase velho são um, igual neles a dor, enraivecidos ambos na mesma impotência.
Precisado
de sossego, corre para ali, sem memória de quando lá foi a primeira vez, nem porquê,
entregando-se à força que nele manda como bruxaria ou praga rogada. Instinto,
voz que lho sussurra, certas noites mete pela estrada velha, e quando chega ao
segundo cruzamento vira à esquerda, sobe pelo atalho do pinhal, o carro em primeira
a resvalar no piso de caruma e terra solta. No alto apaga os faróis, desliga o motor,
espera que os olhos se habituem, entranha-se de silêncio, e num automatismo procura
o maço, o isqueiro, tira um cigarro que vai esquecer entre os dedos. Já ouviu
dizer que são quase mil metros, e pode ser verdade, só muito longe, avultando para
o lado da Espanha, se recortam picos mais a1tos.
O olhar
habituou-se, a noite perdeu o negrume, roda sobre si próprio a orientar-se,
procurando distinguir qual será o reflexo das luzes de Salamanca, talvez aquela
claridade, ou a outra, para a esquerda. Reconhece Foz Côa, o mais são luzinhas de
pueblos e aldeias, fazendo um
tremular de pirilampos na noite de calor abafado. Aguarda o momento de poder separar
o antes do depois, o proveito da perda, e que os vultos se esfumem, os rostos percam
as feições, deixe de ouvir os gritos, os suspiros, as ameaças, o ronco do homem
montado na irmã. Quase uma hora passada e ainda respira a custo, como se tivesse
corrido, mas o alívio há-de chegar. Acende o cigarro.
Fragas,
atalhos, cotovelos de estrada, arribas e desfiladeiros. Torvelinhos de água. Becos,
janelas sem vidros, pardieiros, estrume a fumegar, cães de gado, dentro dele tudo
se esboroa, mingua e some em nevoeiro, sem adivinhar com que fim ou sem distinguir
para que longe. Palavras e subentendidos, juras e gestos, intenções, promessas,
aquele sorriso, aquele abraço, a partida, as voltas, os desencontros, a perdição.
Que lhe resta do que pareceu ou do que foi? Do que disseram? Do que julgou ouvir?
Sem dar conta, menino ainda actor se criou, dois palmos e já sofrido de medo, certo
de que a vida era guerra, o seu teatro, um escape, o corpo de poucas forças, um
revés. No sangue a intuição de perda, vinda do mais escuro do tempo, sabe Deus que
mágoas dos que passaram sem deixar nome ou pegada, iguais aos bichos, como eles
apodrecendo em campa rasa, lembrados por um jeito e logo esquecidos.
Silhuetas
apenas, vê-os desfilar na contraluz, de aspecto têm o que lhes empresta na
fantasia e um pouco do que guardou por ter ouvido. Mas donde vêm os que sem hora
nem aviso o assaltam e molestam? Que razões têm quem as não descobre? A alguns nem
sequer conhece, ou talvez não lembre, serão os que enterramos fundo no esquecimento,
a vala comum dos amores traídos, das amizades findas, das derrotas, traições e ignomínias
a que o viver obriga, mesmo quando a decência é o norte». In J. Rentes de Carvalho, O
Meças, Quetzal Editores, Língua Comum, Lisboa, 2016, ISBN 978-989-722-286-3.
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de QuetzalE/JDACT