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e wikipedia
O calígrafo
desfeito
«(…)
Magritte reabriu a armadilha que o caligrama tinha fechado sobre aquilo de que
falava. Mas, com isso, a própria coisa levantou voo. Sobre a página, de um
livro ilustrado, não se tem o hábito de prestar atenção a esse pequeno espaço
em branco que corre por cima das palavras e por cima dos desenhos, que lhes
serve de fronteira comum para incessantes passagens: pois é ali, sobre esses
poucos milímetros de alvura, sobre a calma areia da página, que se atam, entre
as palavras e as formas, todas as relações de designação, de denominação, de
descrição, de classificação. O caligrama reabsorveu esse interstício; mas, uma
vez reaberto, ele não o restitui; a armadilha foi fracturada sobre o vazio: a
imagem e o texto caem, cada um de seu lado, segundo a gravitação que lhes é
própria. Eles não têm mais espaço comum, mais lugar onde possam interferir,
onde as palavras sejam susceptíveis de receber uma figura, e as imagens, de
entrar na ordem do léxico. Na pequena, estreita faixa, incolor e neutra que, no
desenho dei Magritte, separa o texto e a figura, é preciso ver um vazio, uma
região incerta e brumosa que separa agora o cachimbo flutuante em seu céu de
imagem e o pisoteamento terrestre das palavras desfilando em sua linha
sucessiva. Ainda seria demais dizer que há um vazio ou uma lacuna: é antes uma
ausência de espaço, um apagar do lugar-comum entre os signos da escrita
e as linhas da imagem. O cachimbo que se encontrava indiviso entre o
enunciado que o nomeava e o desenho que devia figurá-lo, esse cachimbo de
sombra que cruzava os lineamentos da forma e a fibra das palavras, fugiu
definitivamente. Desaparecimento que, do outro lado desse riacho pouco
profundo, o texto constata divertidamente: isto não é um cachimbo. O desenho,
agora solitário, do cachimbo, por mais que se faça tão semelhante quanto pode a
essa forma que a palavra cachimbo designa ordinariamente; por mais que o texto
se desenrole sob o desenho com toda a fidelidade atenta de uma legenda num
livro erudito: entre eles só pode passar a formulação do divórcio, o enunciado
que conteste ao mesmo tempo o nome do desenho e a referência do texto.
Em
nenhum lugar há cachimbo
A
partir daí pode-se compreender a última versão que Magritte deu de Isto não
é um cachimbo. Espreitando o desenho do cachimbo e o enunciado que lhe
serve de legenda sobre a superfície bem claramente delimitada de um quadro (na
medida em que se trata de uma pintura, as letras são apenas a imagem das letras
na medida em que se trata de um quadro-negro, a figura é apenas a continuação
didáctica de um discurso), colocando esse quadro sobre um triedro de madeira
espessa e sólida, Magritte faz tudo o que é preciso para reconstituir (seja
pela perenidade de uma obra de arte, seja pela verdade de uma lição de coisas)
o lugar-comum à imagem e à linguagem. Tudo está solidamente amarrado no
interior de um espaço escolar: um quadro mostra um desenho que mostra
a forma de um cachimbo; e um texto escrito por um zeloso professor primário
mostra que é bem de um cachimbo que se trata. Não vemos o dedo indicador do
mestre, mas ele reina em todos os lugares, assim como sua voz, que está
articulando claramente: isto é um cachimbo. Do quadro à imagem, da
imagem ao texto, do texto à voz, uma espécie de dedo indicador geral aponta,
mostra, fixa, assinala, impõe um sistema de reenvios, tenta estabilizar um espaço
único. Mas por que introduzi ainda a voz do mestre? porque mal ela disse isto é
um cachimbo, e já foi obrigada a retomar e balbuciar: isto não é um
cachimbo, mas o desenho de um cachimbo, isto não é um cachimbo, mas uma frase
dizendo que é um cachimbo, a frase: isto não é um cachimbo, não é um
cachimbo; na frase: isto não é um cachimbo, isto não é um cachimbo: este
quadro, esta frase escrita, este desenho de um cachimbo, tudo isto não é um cachimbo».
In
Michel Foucault, Isto Não é Um Cachimbo, Editora Paz e Terra, 1973, tradução de
Jorge Coli, 1989/2004, ISBN 978-857-753-031-1.
Cortesia
EPTerra/JDACT