jdact
Floresta
de Ferrara, nos limites do burgo de São Jorge. 12 de Abril de 1333
«(…)
Escondeu-o explicou o cardeal, não longe daqui. Voltou a erguer-se, sacudindo
da veste um qualquer resquício de erva. Enviei homens de confiança para o
recuperarem, eis o motivo do meu atraso. Já deviam ter regressado. Com efeito,
pouco depois, cinco homens encapuçados saíram do denso arvoredo, revelando-se
sob o luar. Traziam brigantinas guarnecidas de tachas e amplos mantos negros. O
mais alto vinha no meio com um pequeno cofre apertado contra o peito.
Ajoelhou-se diante do prelado e apresentou-lho, sem dizer palavra. O cardeal
observou o cofre por um instante, quase receoso, e, finalmente, vencido pela
impaciência, abriu-o. No interior encontravam-se três objectos. Dominus meus et Deus meus, murmurou com
voz tremente, fazendo o sinal da cruz, e, com grande reverência, mostrou o
conteúdo aos dois nobres. Observou as suas expressões atordoadas, esperando que
se pronunciassem, mas, visto que não recebia comentários, decidiu pôr de lado
as emoções e tomou a iniciativa. Eu fico com a taça, e o príncipe recebe à sua
guarda a ponta de lança, anunciou, pesando as palavras. Quanto a vós,
majestade..., e retirou o terceiro objecto do cofre, para o analisar à luz de um
archote. Era um pequeno rolo de pergaminho.
À
vista do objecto, o homem de armas venceu o espanto e retirou-lho da mão. Isto
é responsabilidade minha, replicou com desconfiança, e com ele o seu segredo. O
homem vestido de púrpura pareceu prestes a protestar, mas cerrou os lábios,
conformado. Seja, majestade, disse, melífluo. Será vosso quando conseguirmos revelar
a sua existência. No entanto, eminência..., objectou o homem, sempre cauteloso.
Perdoai a ousadia, mas se entretanto ocorrer algo de desagradável ou não for
capaz de vos localizar, como poderei demonstrar a autenticidade deste
documento? O cardeal soltou um suspiro. Tendes razão, sem o meu testemunho
arriscar-se-ia a passar por falso. Deixai-me reflectir um instante. Observou o
rolo de pergaminho, permanecendo em silêncio. Então, retirou a mão direita da
luva de ferro e puxou o anel de ouro que trazia no dedo anelar. Fazei-o
acompanhar disto, como garantia da minha palavra, e ofereceu-lho. Mas cuidado,
não o mostreis a ninguém enquanto não for o momento certo. No momento em que
nos reuniremos de novo, disse o homem, pegando no anel, diante do papa. O
prelado devolveu-lhe um sorriso cúmplice. No momento em que o vosso filho se
tornar imperador. Quando os três homens partiram, deixaram um corpo nu e
tremente no meio da clareira. O padre Facio Malaspina ainda estava vivo.
A pedra
do exílio
Planalto
de Crécy. 26 de Agosto de 1346
Maynard
teve novamente aquele sonho. Três cavaleiros de armadura, a cavalo, lançando-se
numa carga furiosa. Não tinham o aspecto de comuns mortais. As suas cabeças estavam
envolvidas por auréolas flamejantes, cada uma delas de cor diferente. A primeira
branca, a segunda vermelha, a terceira dourada. Atravessavam as trevas trazendo
na mão misteriosos troféus, enquanto as suas cabeleiras dançavam ao vento como caudas
de cometas. Antes de voltar a abrir os olhos, viu aquela imagem sobrepor-se às memórias
recentes e, por instantes, acompanhou o ataque dos três cavaleiros entre fileiras
de homens em combate, num triunfo de morte e de violência. Depois ouviu o sibilo
das setas inglesas, o relincho assustado do seu corcel, o estrondo... E acordou
com um estremecimento.
Estava
virado para o chão, com a boca cheia de lama, em escuridão total. A chuva batia-lhe
contra a armadura com um tinido profundo, enfadonho, que o impeliu a levantar-se.
Então apercebeu-se de que tinha as pernas bloqueadas e sentiu-se invadir pelo terror.
Algo pesado comprimia-lhe as costas. Num lance de desespero, estendeu o braço esquerdo,
o único que conseguia mexer, em busca de um ponto de apoio. Mesmo que não visse
nada, sentiu que a mão envolvida na luva de ferro se prendia a algo semelhante a
cordas. Agarrou-as com força e começou a arrastar-se, com esforço. A armadura
estorvava-o, limitava-lhe os movimentos, mas não o impediu de continuar até libertar
igualmente o braço esquerdo». In Marcello Simoni, A Abadia dos Cem
Pecados, 2014, tradução de Inês Guerreiro, Clube do Autor, 2016, ISBN
978-989-724-278-6.
Cortesia
de CdoAutor/JDACT