quinta-feira, 21 de abril de 2016

Abadia dos Cem Pecados. Marcello Simoni. «À vista do objecto, o homem de armas venceu o espanto e retirou-lho da mão. Isto é responsabilidade minha, replicou com desconfiança, e com ele o seu segredo. O homem vestido de púrpura pareceu prestes a protestar, mas cerrou os lábios, conformado»

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Floresta de Ferrara, nos limites do burgo de São Jorge. 12 de Abril de 1333
«(…) Escondeu-o explicou o cardeal, não longe daqui. Voltou a erguer-se, sacudindo da veste um qualquer resquício de erva. Enviei homens de confiança para o recuperarem, eis o motivo do meu atraso. Já deviam ter regressado. Com efeito, pouco depois, cinco homens encapuçados saíram do denso arvoredo, revelando-se sob o luar. Traziam brigantinas guarnecidas de tachas e amplos mantos negros. O mais alto vinha no meio com um pequeno cofre apertado contra o peito. Ajoelhou-se diante do prelado e apresentou-lho, sem dizer palavra. O cardeal observou o cofre por um instante, quase receoso, e, finalmente, vencido pela impaciência, abriu-o. No interior encontravam-se três objectos. Dominus meus et Deus meus, murmurou com voz tremente, fazendo o sinal da cruz, e, com grande reverência, mostrou o conteúdo aos dois nobres. Observou as suas expressões atordoadas, esperando que se pronunciassem, mas, visto que não recebia comentários, decidiu pôr de lado as emoções e tomou a iniciativa. Eu fico com a taça, e o príncipe recebe à sua guarda a ponta de lança, anunciou, pesando as palavras. Quanto a vós, majestade..., e retirou o terceiro objecto do cofre, para o analisar à luz de um archote. Era um pequeno rolo de pergaminho.
À vista do objecto, o homem de armas venceu o espanto e retirou-lho da mão. Isto é responsabilidade minha, replicou com desconfiança, e com ele o seu segredo. O homem vestido de púrpura pareceu prestes a protestar, mas cerrou os lábios, conformado. Seja, majestade, disse, melífluo. Será vosso quando conseguirmos revelar a sua existência. No entanto, eminência..., objectou o homem, sempre cauteloso. Perdoai a ousadia, mas se entretanto ocorrer algo de desagradável ou não for capaz de vos localizar, como poderei demonstrar a autenticidade deste documento? O cardeal soltou um suspiro. Tendes razão, sem o meu testemunho arriscar-se-ia a passar por falso. Deixai-me reflectir um instante. Observou o rolo de pergaminho, permanecendo em silêncio. Então, retirou a mão direita da luva de ferro e puxou o anel de ouro que trazia no dedo anelar. Fazei-o acompanhar disto, como garantia da minha palavra, e ofereceu-lho. Mas cuidado, não o mostreis a ninguém enquanto não for o momento certo. No momento em que nos reuniremos de novo, disse o homem, pegando no anel, diante do papa. O prelado devolveu-lhe um sorriso cúmplice. No momento em que o vosso filho se tornar imperador. Quando os três homens partiram, deixaram um corpo nu e tremente no meio da clareira. O padre Facio Malaspina ainda estava vivo.

A pedra do exílio
Planalto de Crécy. 26 de Agosto de 1346
Maynard teve novamente aquele sonho. Três cavaleiros de armadura, a cavalo, lançando-se numa carga furiosa. Não tinham o aspecto de comuns mortais. As suas cabeças estavam envolvidas por auréolas flamejantes, cada uma delas de cor diferente. A primeira branca, a segunda vermelha, a terceira dourada. Atravessavam as trevas trazendo na mão misteriosos troféus, enquanto as suas cabeleiras dançavam ao vento como caudas de cometas. Antes de voltar a abrir os olhos, viu aquela imagem sobrepor-se às memórias recentes e, por instantes, acompanhou o ataque dos três cavaleiros entre fileiras de homens em combate, num triunfo de morte e de violência. Depois ouviu o sibilo das setas inglesas, o relincho assustado do seu corcel, o estrondo... E acordou com um estremecimento.
Estava virado para o chão, com a boca cheia de lama, em escuridão total. A chuva batia-lhe contra a armadura com um tinido profundo, enfadonho, que o impeliu a levantar-se. Então apercebeu-se de que tinha as pernas bloqueadas e sentiu-se invadir pelo terror. Algo pesado comprimia-lhe as costas. Num lance de desespero, estendeu o braço esquerdo, o único que conseguia mexer, em busca de um ponto de apoio. Mesmo que não visse nada, sentiu que a mão envolvida na luva de ferro se prendia a algo semelhante a cordas. Agarrou-as com força e começou a arrastar-se, com esforço. A armadura estorvava-o, limitava-lhe os movimentos, mas não o impediu de continuar até libertar igualmente o braço esquerdo». In Marcello Simoni, A Abadia dos Cem Pecados, 2014, tradução de Inês Guerreiro, Clube do Autor, 2016, ISBN 978-989-724-278-6.

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