sexta-feira, 22 de abril de 2016

A Alma das Pedras. Paloma Sanchez-Garnica. «À primeira vista, parecia tratar-se de um monumento de pedra e terra, de pequenas dimensões e cujo acesso, ao que parecia, se encontrava firmemente selado. Tentaram arrancar as ervas, mas essa era uma tarefa inútil»


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Ano da Era do Senhor de 824. A origem de tudo
«(…) Teodomiro passou os três dias seguintes, e as respectivas noites, orando e caminhando de um lado para o outro, sem beber uma gota de água e comendo apenas, ocasionalmente, uma peça de fruta ou castanhas assadas na brasa para minorar a fraqueza que a abstinência lhe provocava no corpo. Havia anos, sobretudo desde que tinha sido nomeado bispo, que não fazia um jejum tão prolongado, pelo que o seu corpo estava pouco habituado a esse sacrifício e a sua fraqueza aumentava a cada hora que passava. A sua alimentação sempre fora frugal, mas não privava o estômago de pratos requintados nem de bom vinho. Ao anoitecer do terceiro dia, Martín Bilibio dormitava um sono inquieto quando abriu os olhos e viu o bispo conversando com Paio ao longe. Sentou-se, aturdido, e perguntou-se o que estaria o eremita a dizer a Sua Eminência. Teodomiro ouvia com atenção as palavras do seu interlocutor. Martín levantou-se cambaleante e dirigiu-se a eles, convencido de que aquele homem empenhado em desencantar algum milagre para seu proveito pessoal estaria a molestar o seu senhor. Contudo, para sua surpresa, calaram-se quando o viram aproximar-se. Eminência, passa-se alguma coisa?
Nada que possa resolver, Martín, retorquiu Teodomiro, esquivando-se a uma resposta mais concreta. Paio olhou de través para Martín e afastou-se, com uma atitude de quem tinha sido interrompido pela presença do monge. É melhor verificar se o meu espírito está preparado para receber a mensagem de Deus..., murmurou o bispo. Se é que há alguma mensagem divina a receber. As suas palavras pareciam cansadas, pouco animadas. Dirigiram-se ao local que Paio lhes tinha indicado alguns dias antes, atravessando a penumbra do bosque por um bocado. O ambiente era muito húmido e o ar parecia mais espesso por causa da neblina rente à terra. Teodomiro seguia alguns passos mais adiante. Atrás de si iam o seu fiel escriba Martín Bilibio e, ao lado deste, colocara-se Paio, atento a todas as reacções do bispo. De repente, Teodomiro julgou ver sair da terra pequenas luminárias em movimento. Surpreendido, nada disse e manteve-se calado, com receio de que se tratasse apenas de alucinações causadas pelo estado de fraqueza em que se encontrava. Abriu e fechou os olhos e avistou algumas mais.
Eram como resplendores na escuridão, umas luzes pálidas esverdeadas ou azuladas, tão leves e subtis que pareciam flutuar no vazio do ar, quase rente ao solo. Ouviu a respiração de Martín e de Paio, que o seguiam de perto, num silêncio prudente. Vistes aquilo?, acabou por perguntar, convencido de que havia algo estranho naquelas luminescências. É a prova, senhor meu!, respondeu Paio, adiantando-se. É o ignis fatuus, interveio Martín Bilibio, em tom calmo. Ocorre amiúde nos cemitérios ou em zonas pantanosas e muito húmidas. E a que se deve o fenómeno? Não sei exactamente, Eminência. Há muitas lendas sobre a sua origem: alguns dizem que são almas penadas que vagueiam na escuridão para se limparem dos seus pecados, outros dizem que são almas de recém-nascidos mortos que se encontram entre o Céu e o Inferno. Também já ouvi dizer que são os espíritos maus à espera dos incautos que entram em campos santos à noite para lhes roubarem as almas...
É o sinal, senhor!, insistiu Paio. É Deus que vos fala... O que é que tu achas, Martín?, perguntou o bispo sem ligar às palavras do eremita. Tens alguma explicação para estas..., luzes? Eu, senhor?!, perguntou Martín, surpreendido com a pergunta. Bem..., não tenho provas de nada, mas ouvi um sábio dizer que estas luzes são provocadas pela putrefacção dos corpos, e talvez seja por isso que se vêem nos campos santos. Teodomiro olhou-o por momentos, com um ar reticente. O seu olhar continuou a penetrar a neblina, observando de vez em quando, essas luzes pálidas refulgentes que iam aparecendo aqui e ali, das quais tentava aproximar-se sem nunca o conseguir, porque ou pareciam afastar-se ou desapareciam engolidas pelo ar. Paio, ouvi dizer que nesta zona existiu um cemitério? Sabes alguma coisa disto? Eminência, há quem o afirme. De facto, existe um lugar, ali, atrás daqueles matagais, onde já me pareceu ver a entrada de um túmulo. Mas entraste? Não, senhor, porque o acesso é intransponível para as minhas poucas forças. Mostra-me esse lugar. Martín Bilibio não percebeu porque é que aquele eremita não tinha falado daquilo antes.
Seguiram-no até aos matagais para que apontava. Aqui está!, exclamou o eremita enquanto afastava a vegetação com a mão. Paio e Martín aproximaram as tochas que levavam na mão. O túmulo estava tão escondido pela vegetação frondosa daquela paisagem que era quase impossível dar com ele para quem não soubesse onde se encontrava. À primeira vista, parecia tratar-se de um monumento de pedra e terra, de pequenas dimensões e cujo acesso, ao que parecia, se encontrava firmemente selado. Tentaram arrancar as ervas, mas essa era uma tarefa inútil, visto que estavam profundamente enraizadas na terra em redor do túmulo. Algo impaciente, Teodomiro dirigiu-se a Martín Bilibio. Martín, ordena aos soldados que limpem a área em torno do túmulo. É a única forma de sabermos se isto é realmente o que parece. Martín afastou-se do local para ir chamar os soldados, que permaneciam tranquilos junto ao oratório de Paio. Quando o viram, ergueram-se a custo. Era noite e não tinham muita vontade de deambular por bosques dos quais tinham ouvido dizer coisas estranhas. Não obstante, pegaram nas tochas e seguiram Martín. Quando estava a chegar ao lugar do túmulo, viu Teodomiro conversando novamente com Paio mas, desta feita, pareciam discutir sobre alguma coisa. Achou aquilo estranho. Acelerou o passo para tentar ouvir sobre que falavam mas, para sua surpresa calaram-se assim que o viram, tal como da primeira vez. O bispo chegou, inclusivamente, a tentar disfarçar o seu evidente estado acalorado mas em vão. Passa-se alguma coisa, Eminência?, perguntou Martín ao bispo, enquanto se aproximava. Nada, Martín, não se passa nada». In Paloma Sanchez-Garnica, A Alma das Pedras, tradução de Miguel Coutinho, Saída de Emergência, 2010, ISBN 978-989-637-288-0.

Cortesia SEmergência/JDACT