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História da vida e da morte de um Cavaleiro Andante
«(…) O seu comportamento
aparece, neste contexto, como o reflexo das profundas mutações sociais e
políticas da primeira metade do século XIII, que atingem o seu ponto crítico no
reinado de Sancho II, levando, inclusivé, ao seu afastamento do governo, porque
leyxou de fazer justiça, e a uma guerra civil que divide os grandes do país
(uma interpretação da crise do reinado de Sancho II, que ultrapassa o domínio
redutor do factor político para assentar, sobretudo, em aspectos de ordem
económica e social). Sobre a intervenção do infante neste processo, os informes
que nos chegaram provêm exclusivamente do olhar da Igreja, particularmente lesada
pelas violências que contra ela foram exercidas: são as numerosas bulas que
Ugolino de Óstia, o papa Gregório IX, emitiu, em curto espaço de tempo, sobre o
assunto, umas dirigidas aos prelados portugueses e peninsulares, outras ao
próprio infante, através das quais podemos tentar delinear os seus projectos e
ambições, os seus apoios e as consequências da sua actuação. Apesar de ser um
único ponto de vista apenas, o clerical.
Um atrito entre o
infante Fernando e mestre Vicente, bispo da Guarda, levou-o a provocar uma
série de tumultos na diocese egitaniense em 1236 ou 1237. É deste último ano,
de 29 de Abril, a bula Laerimabilem siquidem Venerabilis fralris, que
Gregório IX envia ao arcebispo de Toledo e ao bispo de Leão, incumbindo-os de
excomungarem o infante e os seus cúmplices e de lançarem o interdito eclesiástico
em todos os lugares onde eles estacionarem, devido às atrocidades que, com audacia
delinquendi, cometeram contra as igrejas e prelados de Portugal, dissipando
os bens que o bispo e família possuíam em Lisboa e na Guarda e matando vários
clérigos em Santarém, entre os quais se contavam alguns que eram scriptores
Régis. Os atentados perpetrados pelo infante Fernando contra a igreja e os
seus membros foram bem mais graves: além das sanguinolentas perseguições
movidas contra a parentela de João Rolis, deão da Sé de Lisboa, teria ainda
roubado aos seus familiares, entre outros bens, grandes porções de trigo,
cevada e vinho e executado destruições várias, actos em que se teriam envolvido
também, grande sacrilégio, alguns muçulmanos a soldo do infante. Não se fica
por aqui. Acometido de audacia et potentiam e com manus uiolentas,
é responsável por muitos outros crimes contra a clerezia de diversas igrejas e
mosteiros. Tudo isto consta da bula Ad instantiam, que em 20 de Dezembro
de 1239 Gregório IX envia ao bispo de Osma a dar-lhe conhecimento das pesadas
penitências impostas ao infante por tão graves violências cometidas. Mas já uma
outra bula do ano anterior, a Tjrannidem quam, dirigida em 6 de Maio ao
arcebispo de Toledo a acusar de tirania o rei de Portugal, revelava as
depradações que o seu irmão Fernando exerceu contra João Rolis, roubando bens e
destruindo igrejas, nas quais se teria servido também dos valiosos préstimos
dos muçulmanos para destruir e profanar o interior de uma igreja. Portanto, as
lamentáveis façanhas aqui arroladas devem ter sido cometidas no decurso de 1237
e princípios de 1238, e estão directamente relacionadas com a problemática questão
das eleições para o bispado de Lisboa. Uma Sé vacante, uni cabido comprometido
e dividido, um rei indeciso. E uma situação que parece insolúvel e promete
arrastar-se. Assim, a instâncias do papa, é nomeado bispo o deão da Sé, João
Rolis, antigo capelão pontifício, ao que se opõem violentamente alguns cónegos,
o chanceler e o rei, em conflito com ele desde 1223, no intuito de o
substituírem por Estevão Gomes. O que é curioso é que ainda há bem pouco tempo
também este tinha sido alvo da ira régia. Acontecimentos que. no seu conjunto,
levam o rei a ser excomungado e o Reino interditado, durante alguns meses do
ano de 1238.
Foi nesta complexa trama
de relações que Fernando se envolveu activamente. Tentemos perceber porquê.
Agressividade gratuita, aproveitando a fraqueza de um poder central incapaz de
sustentar a ordem pública, simples actos de banditismo com o único fito de
saquear bens ou perseguição política relacionada com o problema da vacância da
Sé lisboeta, tendo em conta a localização precisa dos conflitos? Talvez a
situação de caos e permissividade em que se encontrava o Reino possibilitasse a
confluência de todas estas motivações que, actuando em conjunto, deram origem a
um quadro dramático, composto de violências de toda a espécie. E o infante não
era o único. Parece que também em 1237 o seu tio bastardo, Rodrigo Sanches, teria
cometido violências semelhantes na diocese do Porto. Disso se queixou ao rei o
respectivo bispo, Pedro Salvadores». In Armando Sousa Pereira, O Infante Fernando
de Portugal, Senhor de Serpa (1218-1246), História da vida e da morte de um
Cavaleiro Andante, Estudo apresentado em Setembro de 1997, Seminário “A nobreza
medieval portuguesa: parentesco, identidade e poder”, dirigido por Bernardo
Vasconcelos Sousa, revista Lusitânia Sacha, 2ª série, 10, 1998.
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