Um
amor em Sevilha
«(…)
O que aqui interessa, porém, é o dia de Primavera de 1937 em que chega a
Sevilha sob nome falso, tendo por ordem hospedar-se em determinado hotel e
aguardar que lhe entreguem aí informações sobre as tropas de Franco. A medida que
o tempo ia passando sem o mensageiro aparecer, ele, já cansado das belezas da
Giralda, do bulício das ruas e da incerteza da sua missão, deixava-se ficar
pelo hotel, comendo tapas no bar,
indo tarde e más horas para a cama, hesitando se não seria mais sensato
regressar a Madrid e à família. Mau grado a riqueza de detalhes com que em
geral acompanhava as recordações, neste caso particular a sua narração era
sóbria e breve, quase como se, tantos anos depois, ainda lhe fosse doloroso pôr
no retrato mais que o estritamente essencial. E assim, da mulher que uma tarde
entrou no bar e se sentou junto dele. visivelmente rapariga da vida. Simpática,
nunca saberemos mais: nem a idade, o porte, nada do seu rosto.
Talvez
devido às circunstâncias, ou ao perigo que os rodeava, a cidade não tardaria a
revoltar-se a favor dos nacionalistas e vivia-se um ambiente de catástrofe,
estalou entre aquele rapaz de vinte e seis anos e a mulher incógnita uma paixão
única, tão devoradora que, dentro de dias, a ele pouco sobrava do sentido da
realidade. Todos os desejos da carne se lhe realizavam, mesmo os nunca
sonhados; nenhuma loucura parecia impossível; abria-se-lhe, repentina, uma
vastidão insuspeita de felicidade e prazer. E o passado: amigos, família,
trabalho, as horas de tertúlia, o pudor da esposa, tudo isso parecia
extremamente monótono e desagradável, um planeta longínquo. A guerra? Que lhe
interessava a guerra? Por hábito, mais do que por interesse, tinha perguntado de
vez em quando se havia algum recado, uma mensagem, mas ele próprio era o
primeiro a estranhar a diligência. E se o porteiro, ao vê-lo, sussurrava que
ainda não aparecera ninguém, dava-lhe precipitadamente a gorjeta, como para
fazê-lo calar. Noites que não iria esquecer horas loucas, momentos em que o
mundo em redor parecia habitado por gente cuja existência somente se
justificava porque serviam de figurantes no teatro da sua paixão. O prazer
deixara de ser repetitivo, para se tornar um crescendo cujos limites se dilatavam em permanência, cada vez mais
longínquos, cada vez mais fundos.
Era
felicidade demasiada para que, mais tarde ou mais cedo, o remorso não
aparecesse a incomodá-lo e, recordado dos princípios em que tinha sido criado,
sentou-se a escrever à mulher a carta fatal. Tinha-a discutido longamente com a
amiga e delineado um plano. O melhor. não tosse acontecer algum contratempo,
era proceder já. Ela, todavia, sem o contrariar ou contradizer, não tinha
mostrado entusiasmo nem pressa. E não era preciso que casassem, disse. Então
não eram felizes como estavam? Sim, claro, ele teria de sair do hotel, alugavam
casa, porque a dela era pequenina e barulhenta. Rasgou a primeira versão da
carta, demasiado seca. Rasgou também a segunda, porque lhe pareceu patética. As
que se seguiram nem as chegou a terminar e só na tarde do dia seguinte,
finalmente, conseguiu explicar o acontecido em duas páginas. Pedindo desculpa
do passo informava a mulher para que preparasse o divórcio com um advogado. Por
parte dele não haveria qualquer obstáculo. Cedia-lhe tudo (fizesse o favor de
lhe remeter os seus livros, quando tivesse ocasião) e desejava-lhe muitas
felicidades. Beijos ao menino. Sentiu-se aliviado de um peso, mas nessa noite
tornou a relê-la, acrescentando em post-scriptum
que agradecia uma resposta urgente.
No
dia seguinte leu-a à amiga, estranhando que ela parecesse comover-se. Achas que
não está bem? Não era isso. Achava até muito bem, era uma carta linda. Mas
dava-lhe tanta pena! Quantos anos tinha o menino? Ele contou pelos dedos: dez.
meses. Diante da esplanada onde se tinham sentado, formavam-se grupos em volta
dos vendedores de jornais que apregoavam as últimas edições, gritando mais uma
vitória de Franco, os massacres de Andaluzia. O envelope, ainda em branco,
tinha-se-lhe amarfanhado no bolso e acenou ao empregado para que lhe trouxesse
outro. E mais dois cafés. Será que o correio funciona?, perguntou à amiga. Ela
tinha a impressão de que não, porque a cidade se achava praticamente cercada,
mas o cunhado ia algumas vezes a Marchena, em segredo, e de lá certamente ainda
havia correio para Madrid». In José Rente de Carvalho, Os lindos braços
da Júlia da farmácia, 2011, Quetzal Editores, Lisboa, 2014, ISBN
978-972-564-967-1.
Cortesia
de QuetzalE/JDACT