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wikipedia e jdact
Para o retrato de uma senhora nobre no
século XVIII. A natureza do texto
«(…) Tanto quanto se pode concluir
das informações proporcionadas pelo padre Valério Cordeiro, e porque ainda não
foi possível consultar directamente qualquer cópia, o título Memorias da última
condessa de Atouguia. Manuscrito autobiographico inédito, que ocorre na
primeira edição de 1916, e que foi substituído por A última condessa de Atouguia.
Memorias autobiographicas, na segunda, de Braga, 1917, não pertence ao texto e
releva da directa responsabilidade de quem preparou a edição. Em todo o caso,
as palavras iniciais da presumível autora inscrevem o discurso no registo
autobiográfico ou memoríalistico, na impossibilidade de traçar
fronteiras precisas, no sentido da enunciação na primeira pessoa: o reverendo padre Frei Adriano, meu
director, me manda por Santa Obediência escrever o seguinte que são os
primeiros toques da minha conversão e a direcção do padre Gabriel Malagrida.
[…]. Tendo a edade de quinze anos, no anno 1737, estando eu nesse tempo ainda
em casa de meus paes, que assistiam na cidade de Elvas, por meu pae ser sargento-mór
do regimento daquella praça, vieram a ella missionários do Varatojo, por cuja
razão disse minha mãe, que queria ir ouvi-los, e eu, que costumava ir com ella
fora, sempre que ella sahia, disse-lhe que eu ficaria nesse dia em casa, porque
me aborrecia muito ouvir sermões. Ella me respondeu que por isso mesmo queria
que eu fosse a elle, e, como eu a amava infinito e em tudo desejava dar-lhe
gosto, logo perdi a violencia que tinha em ir; de sorte que fui com
indifferença, sem apetite nem com violência. O missionário era excellente,
muito douto e muito bom pregador; chamava-se frei Lourenço, que hoje é bispo do
Algarve( a partir de 1452, tendo falecido em 1783).
Do ponto de vista cronológico, há
pelo menos três momentos fundamentais na enunciação do relato: a data da
redacção, que várias indicações intratextuais, analisadas por Valério Cordeiro,
fazem remontar de forma bastante segura a 1783, ou pelo menos ao intervalo
temporal entre 1777 e 1783 (são várias as ocasiões em que dona Mariana projecta
o passado no presente, criando assim uma relação entre o momento em que escreve
e o tempo ao qual se reporta. Tal acontece na alusão anterior a frei Lourenço
de Santa Maria, mas outras existem: quando fala de uma ida ao paço de seu pai,
refere que achou de serviço o visconde de Ponte de Lima pai do visconde hoje
secretario de Estado; ora como a nomeação de Tomás Xavier Lima, para
secretário, foi feita depois da queda do marquês de Pombal, em 1777, o texto só
pode ter sido escrito depois. Ao argumentar em favor desta hipótese, o padre
Valério comete algumas incorrecções cronológicas, pois pensa que Tomás Xavier
Lima se tornou secretário apenas depois da morte do marquês de Angeja, Pedro
José Noronha Camões [1716-1788], registando como data de falecimento deste
1778, o que em termos de quadro argumentativo colhia. Todavia, o 3º marquês de
Angeja não morreu em 1778, mas sim em 1788, de acordo com todas as fontes
consultadas. Tal não invalida, no entanto, a primeira hipótese, porque Tomás
Xavier Lima foi nomeado secretário de estado em 1777, depois secretário de
Estado da Guerra, do Interior, do Tesouro, e só mais tarde substitui Angeja,
nas funções de direcção do Ministério, onde o marquês havia, por sua vez,
substituído Pombal. Em todo o caso, a partir de 1783, o marquês de Angeja
abandonou parcialmente o cargo, por razões de saúde. As palavras da condessa
poderiam, eventualmente, aludir a esta circunstância, o que contribuiria para
fixar a data de composição por 1783. Porém, a referência mais pertinente parece
ser precisamente a de frei Lourenço que a condessa diz ser bispo do Algarve e
que faleceu justamente em 1783. Sobre o período em que frei Lourenço, arcebispo
de Goa entre 1743 e 1750, foi bispo do Algarve, de 1751 a 1783, com uma interrupção
entre 1773 e 1777, por ter sido obrigado a renunciar por Pombal que procedeu ao
reordenamento espacial das dioceses do reino, resignação essa que não foi
aceite pelo papa, tendo frei Lourenço regressado depois da queda do marquês), o
momento de início do escrito, 1737, e o lapso de tempo que merece maior atenção
por parte da narradora, entre 1756 e 1759, e que contempla mais directamente a
direcção espiritual de Malagrida.
A ligação e relações entre estes
momentos fundamentais na economia da narrativa parecem demasiado óbvias para
não serem intencionais: em 1783, dona Mariana já tinha recebido a sentença que
a declarava inocente [(decreto de 30 de Junho de 1780) (a Gazeta de Lisboa de
25 de Julho de 1780 (nº XXX) regista: a Rainha N. Senhora, por Decreto de 30 de
Junho, houve por bem declarar que na sua Real presença se tinha plenamente
mostrado achar-se a Excellentissima condeça d’Atouguia inteiramente innocente,
e sem a menor mácula de culpa de inconfidência, por não haver prova alguma, da
qual resultasse indicio de culpada, podendo ser restituída ás honras, e
liberdade, que por direito, e pelo seu nascimento, e qualidade lhe competem],
mas, de acordo com as palavras de Bombelles acima citadas, vivia modestamente
de uma pensão da coroa sem que os seus filhos pudessem usar o nome de família.
Centrando o relato na experiência de direcção do jesuíta, entre 1756 e 1759, a
condessa narrava justamente os anos cruciais, depois do terramoto, que
envolveram o atentado contra o rei José I, em Setembro de 1758, e presenciaram
o desenvolvimento do processo dos Távoras. As recordações escritas de dona
Mariana terminam justamente com a dolorosa entrada no convento de Sacavém,
acompanhada pelas lágrimas da filha, donaLeonor, que tinha seis anos,
procurando manter uma aparente serenidade, embora se visse preza […] como
traidora sem o ser. O texto era, assim, não apenas o relato de uma
experiência de direcção espiritual, mas um sentido e veemente manifesto de
inocência». In Zulmira C. Santos, Entre Malagrida e Pombal. As Memórias da última
condessa de Atouguia, Península, Revista
de Estudos Ibéricos, nº 2, 2005, 401-416, Universidade do Porto.
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