sexta-feira, 1 de abril de 2016

A Marginalia Satírica nos cadeirais do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e Sé do Funchal. Maria M. Braga. «Este é o drama de Pigmaleão e síntese do pecado da idolatria, dentro de cada imagem espreita o demónio; toda a arte é vaidade e falsa cópia da realidade»

Cortesia de wikipedia e jdact

O combate do artífice com o demónio
«(…) A marca do anátema do visível sempre esteve presente em toda a Idade Média. De um lado a imagem como testemunho do mistério divino, do outro o desafio e fascínio pelo ídolo, associado ao maravilhoso que investe de poder a matéria terrena trabalhada pelo artífice. O operário vive este dilema constante: engrandecer a igreja pela arte e desafiar o poder da criação pelo dom que só a Deus deveria pertencer. Os cultos heréticos de pedreiros livres e confrarias de trabalhadores artesanais sempre estiveram associadas a esta dicotomia que os dividia entre a mão de Deus e a necessidade de homenagear o diabo. Deus é ente supremo, o seu plano não se aprende nem se decifra, só o príncipe das trevas usa a matéria terrenas para lhe disputar a obra. Ainda que se dedique a Deus, o talento do artista criador aproxima-o do idólatra, investindo de carácter físico o desejo que nutre pela imagem a que dá forma. O perigo da imagem resulta desse excesso de sensação e desejo, transformando-as em ídolos capazes de controlar as mentes dos seus autores. O fascínio que emana da estatueta assemelha-se ao amor cortês, aprisionando o criador numa devoção que nunca será retribuída. Este é o drama de Pigmaleão e síntese do pecado da idolatria, dentro de cada imagem espreita o demónio; toda a arte é vaidade e falsa cópia da realidade.
O tema encontra-se esboçado, de forma pouco usual, numa misericórdia do cadeiral de Santa Cruz de Coimbra. Um entalhador bater com o maço do ofício num monstro, adossado à própria mísula, como se o fruto do seu trabalho tivesse invocado o maligno. O combate do artista com o demónio, como já foi apelidado, numa variação de Pigmaleão a insuflar vida à estátua ou a luta do escultor contra o demónio que ensombra a criação artística.

O espírito enciclopédico e aclimatações locais
O facto destas obras serem produto de migrações de artífices explica, em grande parte, a universalização temática, devendo-se as variações e simplificações formais à maior ou menor riqueza da encomenda. No entanto, existem sempre aclimatações locais detectáveis na estilística do ornamento da estrutura decorativa e arquitectónica do cadeiral, bem como na capacidade de se homenagear figurativamente o momento histórico que se vivia. Nos dois exemplares manuelinos em que apenas estão identificados os mestres Machim e João Alemão que trabalharam em Coimbra entre meados de 1513-1518, é notória a simbólica de engrandecimento da saga da Expansão. No cadeiral coimbrão a gramática ornamental apresenta tipologias tardo-góticas muito próximas de exemplares do Norte da Europa, a que se acrescenta a habitual simbólica manuelina. Seguindo o exemplo do cadeiral de Toledo, inclui uma apologética de viagem e combates contra hereges. No coroamento superior, com o périplo da viagem pelo mundo, dos soldados de Cristo; nos espaldares baixas na magnífica parada de rendição de mouros e judeus numa mutação de memórias bíblicas aplicadas à principal tarefa do poder temporal e espiritual, o combate ao herege e a realização do sonho Imperial da Cristandade. O exemplar madeirense, executado por volta de 1516-17, cuja autoria ainda está por comprovar, possui inúmeras semelhanças com o cadeiral de Yuste. A decoração da talha em ramos podados e formas gordas dos dosséis está mais próxima dos paralelos ornamentais em pedra e inclui já detalhes de cariz renascentista. Simultaneamente, introduzem-se uma série de apontamentos locais (trabalhos da lavoura e actividade vinícola) e outros particularmente exóticos que evocam paragens africanas e orientais. O negro a tocar tambor, outro a apanhar cocos; o encantador de serpentes; a fauna e flora exótica, num conjunto significativo que supera o que os exemplos do país vizinho. A curiosidade do olhar aproxima-se cada vez mais da realidade descoberta que ainda não teve tempo de se transformar em lenda. A marginalia assimila-a, de forma aditiva, enquanto o legado do passado resiste. Em breve nova querela iconoclasta ecoará numa Igreja dividida, pondo termo a esta babélica tradição de raiz tão profana e popular». In Maria Manuela Braga, A Marginalia Satírica nos cadeirais do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e Sé do Funchal, Revista Medievalista, director Luís Krus, Ano 1, Nº 1, Instituto de Estudos Medievais, FCSH-UNL, FCT, 2005, ISSN 1646-740X.

Cortesia de RMedievalista/JDACT