O
combate do artífice com o demónio
«(…)
A marca do anátema do visível sempre esteve presente em toda a Idade Média. De
um lado a imagem como testemunho do mistério divino, do outro o desafio e
fascínio pelo ídolo, associado ao maravilhoso que investe de poder a matéria
terrena trabalhada pelo artífice. O operário vive este dilema constante:
engrandecer a igreja pela arte e desafiar o poder da criação pelo dom que só a
Deus deveria pertencer. Os cultos heréticos de pedreiros livres e confrarias de
trabalhadores artesanais sempre estiveram associadas a esta dicotomia que os
dividia entre a mão de Deus e a necessidade de homenagear o diabo. Deus é ente
supremo, o seu plano não se aprende nem se decifra, só o príncipe das trevas
usa a matéria terrenas para lhe disputar a obra. Ainda que se dedique a Deus, o
talento do artista criador aproxima-o do idólatra, investindo de carácter
físico o desejo que nutre pela imagem a que dá forma. O perigo da imagem
resulta desse excesso de sensação e desejo, transformando-as em ídolos capazes
de controlar as mentes dos seus autores. O fascínio que emana da estatueta
assemelha-se ao amor cortês, aprisionando o criador numa devoção que nunca será
retribuída. Este é o drama de Pigmaleão e síntese do pecado da idolatria,
dentro de cada imagem espreita o demónio; toda a arte é vaidade e falsa cópia
da realidade.
O
tema encontra-se esboçado, de forma pouco usual, numa misericórdia do cadeiral
de Santa Cruz de Coimbra. Um entalhador bater com o maço do ofício num monstro,
adossado à própria mísula, como se o fruto do seu trabalho tivesse invocado o
maligno. O combate do artista com o demónio, como já foi apelidado, numa
variação de Pigmaleão a insuflar vida à estátua ou a luta do escultor contra o
demónio que ensombra a criação artística.
O
espírito enciclopédico e aclimatações locais
O
facto destas obras serem produto de migrações de artífices explica, em grande
parte, a universalização temática, devendo-se as variações e simplificações
formais à maior ou menor riqueza da encomenda. No entanto, existem sempre
aclimatações locais detectáveis na estilística do ornamento da estrutura
decorativa e arquitectónica do cadeiral, bem como na capacidade de se
homenagear figurativamente o momento histórico que se vivia. Nos dois
exemplares manuelinos em que apenas estão identificados os mestres Machim e
João Alemão que trabalharam em Coimbra entre meados de 1513-1518, é notória a
simbólica de engrandecimento da saga da Expansão. No cadeiral coimbrão a
gramática ornamental apresenta tipologias tardo-góticas muito próximas de
exemplares do Norte da Europa, a que se acrescenta a habitual simbólica
manuelina. Seguindo o exemplo do cadeiral de Toledo, inclui uma apologética de
viagem e combates contra hereges. No coroamento superior, com o périplo da
viagem pelo mundo, dos soldados de Cristo; nos espaldares baixas na magnífica
parada de rendição de mouros e judeus numa mutação de memórias bíblicas
aplicadas à principal tarefa do poder temporal e espiritual, o combate ao
herege e a realização do sonho Imperial da Cristandade. O exemplar madeirense,
executado por volta de 1516-17, cuja autoria ainda está por comprovar, possui
inúmeras semelhanças com o cadeiral de Yuste. A decoração da talha em ramos podados
e formas gordas dos dosséis está mais próxima dos paralelos ornamentais em
pedra e inclui já detalhes de cariz renascentista. Simultaneamente,
introduzem-se uma série de apontamentos locais (trabalhos da lavoura e
actividade vinícola) e outros particularmente exóticos que evocam paragens africanas
e orientais. O negro a tocar tambor, outro a apanhar cocos; o encantador de
serpentes; a fauna e flora exótica, num conjunto significativo que supera o que
os exemplos do país vizinho. A curiosidade do olhar aproxima-se cada vez mais
da realidade descoberta que ainda não teve tempo de se transformar em lenda. A marginalia
assimila-a, de forma aditiva, enquanto o legado do passado resiste. Em breve
nova querela iconoclasta ecoará numa Igreja dividida, pondo termo a esta
babélica tradição de raiz tão profana e popular». In Maria Manuela Braga, A Marginalia Satírica nos cadeirais do
Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e Sé do Funchal, Revista Medievalista,
director Luís Krus, Ano 1, Nº 1, Instituto de Estudos Medievais, FCSH-UNL, FCT,
2005, ISSN 1646-740X.
Cortesia
de RMedievalista/JDACT