sábado, 23 de abril de 2016

O Amor de Camilo Pessanha. António Osório. «Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho, onde esperei morrer, meus tão castos lençóis? Do meu jardim exíguo os altos girassóis quem foi que os arrancou e lançou no caminho?»

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Ana de Castro e o Salvamento da Clepsydra
«(…) Não quero tirar nenhum mérito a João Castro Osório pelo salvamento, da Clepsydra. Durante décadas lutou pela obra de Camilo Pessanha, procurando descobrir outros poemas, e a ele, entre o mais, se deve a publicação desse livro admirável que é China: Estudos e Traduções (1944), para o qual escreveu discretamente, sem revelar a autoria, uma introdutória Nota Explicativa. O volume contém as maravilhosas Oito Elegias Chinesas, e Vozes do Outono, traduzidas por Camilo Pessanha, além de uma Legenda Budista, (que parece um poema dele), conferências sobre a literatura e estética chinesas, um aterrador escrito sobre a China que conheceu, e de como era nesse país a justiça penal, os seus carrascos venais com uma tabela de reduções nas horripilantes atrocidades, públicas, para suavizar aos executados o suplício da lentíssima morte.
Todavia, no salvamento (é o termo) da Clepsydra, Ana Castro Osório teve um papel decisivo, impõe-se reconhecê-lo. Sabendo que o autor era, nas suas próprias palavras, um verdadeiro poeta, mas um tímido, um misantropo, um desiludido, foi ela que teceu, fiel ao prometido pacto de amizade, toda a teia que levou dois adolescentes, primeiro António, o sobrinho de catorze anos, e depois João, o filho de dezasseis, àquilo que parecia impossível, trazer Pessanha a sua casa, sacar-lhe da memória os poemas e publicá-los. Conhecendo-o, apostou no filho e no sobrinho para esse grandioso objectivo. O sobrinho trouxe-lho a casa; e o filho (não ela) pediu-lhe que aos serões recitasse os poemas para poderem ser publicados. O importante era que o livro aparecesse e lhe fosse parar às mãos, que ela o editaria... Conta João Castro Osório que, num desses serões, habilmente organizados pela mãe, foi para nós todos um encanto ouvir-lhe, na quase cantada, mas muito expressiva leitura, e na sua prosa admirável e cheia de poesia, as reflexões, profundas e subtis, de um Filósofo chinês da dinastia Tang, intituladas Vozes do Outono; pediu-lhe minha mãe, a escritora Ana Castro Osório, uma cópia dessas páginas, que tanto lhe agradavam, e autorização para, depois, as publicar.
Que fez Ana Castro Osório? Não perdeu tempo, enquanto aguardava que Camilo enviasse os outros prometidos poemas para a Clepsydra. Nesse mesmo ano de 1916, no primeiro (e único) número da revista Centauro, um prolongamento do Orpheu e de que era director Luís Montalvor, além dos catorze sonetos de Fernando Pessoa, Passos da Cruz, são publicados em lugar de honra dezasseis poemas inéditos, de Camilo Pessanha, entre os melhores da futura Clepsydra, sendo o primeiro Os Violoncelos, e o último aquela lamentação pela morte da mãe, uma das mais belas e pungentes elegias de todas as literaturas, e que o autor, escrevendo a Ana, diz constituir uma síntese trágica:

Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho,
onde esperei morrer, meus tão castos lençóis?
Do meu jardim exíguo os altos girassóis
quem foi que os arrancou e lançou no caminho?

Quem quebrou (que furor cruel e simiesco)
A mesa de eu cear, tábua tosca de pinho?
E me espalhou a lenha? E me entornou o vinho?
Da minha vinha o vinho acidulado e fresco...

Ó minha pobre mãe!... Não te ergas mais da cova,
olha a noite, olha o vento. Em ruína a casa nova...
Dos meus ossos o lume a extinguir-se breve.

Não venhas mais ao lar. Não vagabundes mais,
alma da minha mãe... Não andes mais à neve,
de noite a mendigar às portas dos casais.

Síntese trágica da sua poesia e fatalidades pessoais, transposição do estigma da bastardia, e da humilhação da mãe, amante e criada até ao fim (no velho casarão infamado da quinta de Braga). A escolha reflecte a sensibilidade da escritora, pois encontra-se aí o núcleo mais valioso dos poemas que viriam a fazer parte da Clepsydra, com excepção, claro, da Canção da Partida [esta elegia à morte da mãe levanta uma singular estranheza. Numa carta que escreveu a Alberto Osório Castro, datada de 8-9-1896 (dia dos meus trinta anos), Camilo Pessanha confessa ao amigo, estando em Setúbal, na casa do pai deste, que daí por seis meses, toca outra vez para o buraco; deve ser muito triste a segunda despedida; se o Alberto Osório visse por exemplo como minha mãe já está velhinha, toda branca, quer ver medonhos versos meus?; segue-se a primeira versão dessa sublime elegia à morte da mãe, afinal apenas velhinha e toda branca; não tem fundamento, pois, a opinião de que esta elegia teria sido escrita depois de ter conhecimento de que a mãe estaria moribunda, por carta que o pai lhe enviara poucos dias depois da chegada inicial a Macau (1894); foi escrita pelo menos dois anos depois, vendo o envelhecimento da infeliz, da sacrificada Maria do Espírito Santo, filha de louca, mãe de um louco (o filho Manue1 e governante de Conselheiro; que medonhos versos estes à mãe; alma penada, vagabunda, de noite a mendigar à porta dos casais; um destino ainda mais cruciante depois da morte]…
João Castro Osório revela que, autorizado pela mãe, diligenciou junto de Luís Montalvor a publicação desse núcleo extraordinário de poemas, do que não duvido». In António Osório, O Amor de Camilo Pessanha, edições ELO, obra apoiada pela Fundação Oriente, colecção de Poesia e Ensaio, Linha de Água, 2005, ISBN 972-8753-43-8.

Cortesia da FOriente/LinhadeÁgua/JDACT