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O primeiro voo
«(…)
Foi a vez de Jerónimo gerar novo entusiasmo entre os invasores. O fidalgo
jurara que havia de cravar o seu punhal nas portas de Ceuta, naquela manhã, e
entendeu que era tempo de cumprir a sua estorvada intenção. Gritando por
Santiago, começou a correr; logo Álvaro o perseguiu de montante em riste, e
toda a hoste, incluindo os infantes, avançaram à desfilada contra a cidade,
apesar de as ordens d'el-rei se resumirem à obrigação de tomarem a praia. Volteando
o seu montante, Álvaro quase atingiu Jerónimo, porém, o choque com os mouros
foi terrível. Comprimido entre a pressão dos que defendiam e a dos que
atacavam, Álvaro limitou-se a evitar a queda; ainda se desequilibrou, mas usou
o montante como um bordão. Jerónimo afastara-se, adiando a morte que lhe estava
marcada. O ímpeto brutal dos assaltantes surpreendeu os defensores; Álvaro e os
seus companheiros, incluindo os infantes, entraram em Ceuta envoltos pelos
mouros, e Jerónimo cravou o seu punhal na porta da cidade. Centos de
portugueses avançaram até à primeira praça, onde os oficiais deram ordem de
paragem. Parecia um sonho, haviam entrado na cidade ao primeiro assalto. Os
infantes, acompanhados pelo meio-irmão, o conde de Barcelos, reorganizavam a
hoste. Vamos limpar esta cidade dos infiéis, rua a rua, gritou o conde.
O
monarca Duarte I coordenava as forças e dividiu-as em vários grupos; Álvaro
conseguiu colocar-se a par de Jerónimo; estava prestes a cumprir a sua
vingança. Seguindo Martim Afonso Melo, o guarda-mor d'el-rei, Álvaro e Jerónimo
penetraram no dédalo da urbe africana. Ambos integraram a cabeça da coluna que
investia sobre defensores desnorteados e habitantes desesperados. Excitado pelo
combate, entusiasmado com a vitória extraordinária que se avizinhava, Álvaro ocupou-se
da luta selvagem contra o inimigo. Os golpes certeiros causavam admiração entre
os companheiros que o seguiam. De repente, porém, uma nuvem de virotes caiu
sobre os assaltantes ao dobrar de uma esquina: um peão caiu, contorcendo-se com
um ferro espetado na orelha e Jerónimo vacilou, pois um projéctil passara pelas
juntas da armadura no seu joelho e destruíra-lhe a rótula. A turba prosseguiu,
imparável, passando por cima do peão moribundo, quando saíram dois mouros de
lança em riste por uma porta que não fora aberta pelos assaltantes. Álvaro, que
se detivera ao aperceber-se do ferimento do seu rival, sentiu uma lança contra
a sua couraça, que porém, resistiu. Tombou com o impacto, e um inimigo caiu
sobre ele, contudo, a ferocidade do Ataíde eliminou-o num ápice; o outro
atacava Jerónimo, que, aturdido pela dor no joelho, não se defendeu, sendo
trespassado pela arma inimiga. O grito de triunfo que o mouro soltou foi
interrompido pelo golpe que lhe deceptou a cabeça. Coberto do sangue das suas
vítimas, Álvaro acercou-se do fidalgo moribundo. Jerónimo chamou o companheiro
de armas com um fio de voz. Ajudai-me, cavaleiro. Sou um simples escudeiro,
disse Á1varo, embaraçado. Sois um bravo. Andamos juntos há horas e bem vi as
vossas proezas. Um esgar de dor interrompeu as suas palavras, mas depois prosseguiu:
são feridas de morte. Peço-vos que solteis a minha couraça.
Os
combates prosseguiam noutras ruas, todavia, ali, a luta havia cessado. Restavam
feridos gemendo, e a primeira vaga da soldadesca iniciava o esbulho.
Indiferente ao que o rodeava, Álvaro teve dificuldade em realizar a operação
sem tocar na haste que atravessava o abdómen de Jerónimo. Parte dos intestinos
estavam na ponta da lança e Álvaro não conseguiu evitar o vómito. Quando soltou
a couraça, chocado, viu no peito suado de Jerónimo a imagem de Santa Catarina
de Sena que ele oferecera a Filipa Andrade no dia em que a tomara para si, em
Outubro do ano anterior. Tomai este fio, por favor. Foi-me dado pela mulher que
amo. O fidalgo respirava com mais dificuldade e um fio de sangue escorria-lhe
pelo canto da boca. Conhecia-a na corte vai para quatro meses. e levei-a comigo.
Ao
ouvir tais palavras, o coração de Álvaro alvoroçou-se e o jovem escudeiro
começou a tremer, e não conseguiu evitar que as lágrimas lhe corressem pela
face. Não vos apiedeis de mim. Ganhei a minha honra, e morro na companhia de um
bravo. A minha amada pediu-me que perfilhasse o filho que já levava no ventre,
e eu acedi. Álvaro ouvia-o, petrificado. Suplico-vos que ides, no final desta
santa jornada, a Sátão, e que entregueis esta imagem a Filipa Andrade. Peço-vos
ainda que sejais testemunha da minha paternidade, quando nascer a criança. A
voz sumia-se e o sangue recrescia. Álvaro tomou o fio nas suas mãos. Como vos
chamais, nobre companheiro? Álvaro respondeu instintivamente, sem reflectir, e,
na verdade, sem querer afligir o homem que ainda há pouco tentava matar: sou Álvaro
Ataíde». In João Paulo O. Costa, O Fio do Tempo, 2009, Temas e Debates, Círculo
de Leitores, 2011, ISBN 978-989-644-135-7.
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