«(…) Foi acordado por uma voz. Quer
que lhe sirva a comida, sir, ou deverei lançá-la já borda fora? O
retumbar deixara de se fazer ouvir. O barco rangia pacatamente, entregando-se à
ondulação. Olhou para cima, para a escotilha. Uma lamparina que emitia uma luz
avermelhada iluminava o rosto do grumete. O rapaz esboçou um sorriso trocista. Antero
apalpou as suas roupas. Estavam frias e hirtas. Tira esse sorriso da cara,
rapazola, ou vou aí e é à pancada que to tiro, ao dizer isto, enganou-se
na pronúncia que fingia ter. Eu subo. É claro que consigo manter a comida no
estômago. Tinha sobrevivido. Era evidente que, enquanto dormia, a tempestade se
havia acalmado. Antero desceu do beliche. Era já só em pequenas poças que a
água se acumulava no chão. Apoiou-se na mesa. Trepou escada acima com
dificuldade. Era costume os passageiros comerem à mesa do comandante e dos
oficiais. Desconfiava de que fora o próprio Wrightson a dar ordens para que a
comida lhe fosse sempre servida na cabina, para que ele próprio ficasse a salvo
de quaisquer suspeitas de estarem combinados, caso o empreendimento desse para
o torto. Era obviamente impensável pô-lo a comer junto da tripulação, já que
isso iria fomentar a insatisfação entre os marinheiros, uma vez que, enquanto
passageiro, ele recebia uma alimentação melhor do que a deles. Aos marinheiros
era servida carne fria pela manhã e de resto comiam uma mistura que consistia
de água e farinha, a que davam o nome de caldo indiano. Ele, pelo
contrário, recebia refeições quentes e bem condimentadas, semelhantes às que
seriam servidas numa estalagem de nível médio. De resto, não havia razão alguma
para o isolar do contacto com os oficiais, a não ser o facto de o comandante
Wrightson estar assim a tentar proteger-se de quaisquer danos. A falta de
confiança deste no sucesso daquele empreendimento era algo que irritava Antero.
Das duas uma: ou se estava naquilo de corpo e alma e se respondia por isso, ou
deixava-se ficar a coisa.
Quando ele subiu para o exterior,
através da escotilha, o grumete estendeu-lhe um tabuleiro, sobre o qual havia
um púcaro de madeira, com biscoitos em redor. Hoje quer comer aqui fora ao ar
livre, sir?, perguntou. Deixara de fazer aquele sorriso trocista. Antero
já estava farto do bojo do navio. Sentia necessidade de ver o céu. Queria ter a
sensação de que ainda se mantinha vivo. Deixa o tabuleiro aí, disse e desta
feita a pronúncia voltou a sair-lhe melhor. O grumete colocou o tabuleiro sobre
o rebordo elevado da escotilha. Quer que também deixe a luz aqui? Antero olhou
em redor. O vento continuava a soprar com força e havia nuvens negras a
cobrirem o céu. Junto ao horizonte adquiriam um brilho avermelhado. Próximo do
navio conseguia, mesmo só com a crepuscular luminosidade matinal, vislumbrar a
espuma nas vagas, embora o mar se apresentasse agora mais liso e vasto. Não é
necessário. Não tarda a ficar claro. Espera. Voltou a descer e foi buscar o
livro de apontamentos, que estava debaixo da enxerga de palha. Já lá em cima,
junto à lamparina, sentou-se na borda da escotilha, retirou o livro do cabedal
que o envolvia, humedeceu a ponta do lápis de carvão e escreveu: Quinta-feira,
30 de Outubro de 1755. Violenta tempestade. Cristas das vagas que se abatem
sobre o navio, vento com a força de um furacão. O Fortune resistiu. Sexta-feira, 31 de Outubro de 1755, alvorada. Mar
encrespado. Espuma no cimo das ondas. O vento continua forte. Arrumou o
livro dos apontamentos no bolso junto ao peito e disse: Obrigado. Podes ir. Quando
o grumete se foi embora com a luz, Antero pegou num pedaço de biscoito e
levou-o à boca. Estava humedecido e fora barrado com manteiga e sal. Antero
mastigou, pegou no púcaro e bebeu. Um vinho de taberna de sabor azedo
misturou-se com a saliva pastosa dos restos do biscoito. O contrabando no porão
do Fortune tinha um valor de pelo menos trinta mil réis. Depois de
entregar a carga ao homem, iria descansar uns dias. Visitaria Leonor. E Samira.
Antero aspirou profundamente para os seus pulmões o ar fresco do mar. Tudo
haveria de correr bem. Esta era a época dos contrabandistas. Quem conseguiria
vigiar a vastidão dos mares mundiais? Ninguém era capaz de tal coisa. Os mares
eram livres. Só os portos podiam ser controlados, mas até mesmo aí havia sempre
maneira de se esgueirar. De noite era simplesmente impossível abranger com a
vista a totalidade de um porto grande como o de Lisboa. Por entre as chalupas
que traziam os marinheiros de regresso aos seus navios, depois de um serão
passado a emborracharem-se, por entre os botes que conduziam os oficiais até
junto das suas famílias, ninguém conseguia distinguir um barco a remos com
contrabando.
Ainda
assim, bem no fundo do seu coração custava-lhe tudo aquilo. Contrabando não era
algo que gostasse de fazer. Teria preferido dedicar-se à exploração do
enigmático continente meridional, a Terra Australis incognita, e pelo
caminho trataria de cartografar e fazer o reconhecimento das ilhas até então
desconhecidas. De que lhe serviriam aqueles ridículos apontamentos que ia
tomando? Precisava de instrumentos, de um barómetro, de um sextante, não de
madeira, atreita a ficar empenada por causa da humidade do ar marítimo, mas
antes de metal, que permitia o máximo de exactidão possível. O comandante
Wrightson ainda navegava com a vara-de-jacob. No entanto, a posição
poderia ser determinada com muito mais facilidade com recurso a um sextante. E
com um barómetro, quanto não se poderia investigar com um instrumento desses!
Teria gostado de poder medir a pressão atmosférica durante a tempestade do dia
anterior. Por que razão diminuía essa pressão quando se aproximava uma
borrasca? E como se comportaria esta durante a tempestade? Adiante,
onde as nuvens tocavam a água, houve algo que produziu um clarão. Antero olhou
atentamente nessa direcção. E eis que brilhava de novo! Virou-se para a popa.
Onde, no meio da escuridão, se conseguia distinguir a roda do leme, nada se
movia». In Titus Muller, A Jesuíta de
Lisboa, 2010, tradução de Paulo Rêgo, Casa das Letras, 2011, ISBN
978-972-462-047-3.
Cortesia
Cletras/JDACT