terça-feira, 5 de abril de 2016

A Chave Estrela. Primo Levi. «Olhou-me por um momento, com olhos singularmente inexpressivos, e depois repetiu com paciência: se alguém está na própria casa, talvez até esteja sossegado… O mundo é belo porque é variado»

jdact e wikipedia

«Ah, não: tudo eu não posso contar. Ou bem lhe digo o lugar, ou então lhe conto o facto, mas eu, se fosse o senhor, escolheria o facto, porque é um facto e tanto. Depois, se o senhor quiser mesmo recontá-lo, basta trabalhar em cima dele, rectificar, esmerilhar, tirar as aparas, dar uma insuflada e, pronto, aí está uma bela história; e, apesar de eu ser mais jovem que o senhor, história é o que não me falta. O lugar talvez o senhor adivinhe, assim não precisa acrescentar nada; mas, se eu lhe disser onde fica, eu acabo tendo problemas, porque aquela gente é boa, mas um pouco melindrosa. Conhecia Faussone havia apenas dois ou três dias. Encontramo-nos por acaso no refeitório, o refeitório para estrangeiros de uma fábrica muito distante, para a qual fui deslocado devido ao meu ofício de químico de vernizes. Nós dois éramos os únicos italianos; ele estava lá havia três meses, mas tinha estado naquelas terras outras vezes e se virava muito bem com a língua, além das quatro ou cinco que já falava, incorrectamente, mas com fluência. Tem uns trinta e cinco anos de idade, é alto, seco, quase calvo, bronzeado, sempre bem barbeado. Um rosto sério, quase imóvel e pouco expressivo. Não é um grande narrador: ao contrário, chega a ser bastante monótono, propenso à diminuição e à elipse, como se temesse parecer exagerado, mas muitas vezes se deixa levar e então exagera sem se dar conta. Tem um vocabulário reduzido e frequentemente exprime-se por meio de lugares-comuns que talvez lhe pareçam argutos e novos; se quem o escuta não ri, ele repete, como se estivesse lidando com um tonto. ... porque, sabe, se estou nesse negócio de circular por todos os estaleiros, fábricas e portos do mundo, não é por acaso, e sim porque eu mesmo quis. Todos os jovens sonham em conhecer florestas, desertos ou a Malásia, e eu também sonhei com essas coisas; só que gosto que osmeus sonhos se tornem reais, senão permanecem como uma doença que a gente carrega pela vida inteira, ou como a cicatriz de uma operação, que volta a doer sempre que o tempo fica húmido. Havia duas alternativas: esperar ficar rico e depois transformar-me num turista ou então trabalhar como montador. Eu optei por ser um montador. É claro que existem outras maneiras, como quem dissesse virar contrabandista etc., mas essas coisas não servem para mim, porque eu gosto de conhecer países, mas sou um tipo dentro das regras. Agora já me habituei tanto a esta vida que, se precisasse ficar sossegado num canto, adoeceria: para mim, o mundo é belo porque é variado. Olhou-me por um momento, com olhos singularmente inexpressivos, e depois repetiu com paciência: se alguém está na própria casa, talvez até esteja sossegado… O mundo é belo porque é variado. Então, como eu estava dizendo, já passei por tantas e boas, mas a história mais sinistra que me aconteceu foi no ano passado, naquele país que prefiro não mencionar, mas posso dizer que é muito longe daqui e também da nossa casa, e, enquanto aqui sofremos um frio danado, lá, ao contrário, faz um calor de rachar durante nove meses do ano, e nos outros três há muito vento. Estava lá  a trabalhar no porto, mas lá não é como na nossa terra: o porto não é do Estado, e sim de uma família, e a família pertence ao pai de família. Antes de começar a trabalhar na montagem, precisei apresentar-me a ele de fato completo, almoçar, conversar, fumar sem pressa, imagine só, nós que sempre temos as horas contadas. Não por nada, mas é que custamos caro, e esse é o nosso orgulho. Esse pai de família era um tipo meio a meio, meio moderno e meio tradicionalista; vestia uma bela camisa branca, dessas que não são passadas, mas quando entrava em casa tirava os sapatos e também pediu que eu tirasse os meus. Falava inglês melhor do que os ingleses (que, aliás, não lhe agradam muito), mas não me apresentou às mulheres da sua família. Também como patrão devia ser meio a meio, uma espécie de explorador-progressista: imagine que mandou pendurar a sua foto emoldurada em todos os escritórios e até nos depósitos, como se fosse um Jesus Cristo. Mas todo o país é um pouco assim, há um monte de mulas e de monitores, há aeroportos que deixam o de Caselle no chinelo, mas muitas vezes, para chegar a um lugar, é mais rápido ir a cavalo. Há mais boites que padarias, mas vê-se gente nas ruas com tracoma. O senhor deve saber que montar um guindaste é um trabalho e tanto, e uma ponte rolante é ainda pior, mas não são tarefas que se façam sem uma equipa: é preciso alguém que conheça as malícias do ofício e que coordene tudo, nós, e depois os auxiliares da obra. E é aqui que começam as surpresas. Naquele tal porto, as confusões sindicais também são um grande problema; o senhor sabe, é um país onde, se alguém rouba alguma coisa, cortam-lhe a mão em praça pública: a direita ou a esquerda, a depender do que foi roubado, ou às vezes até uma orelha, mas sempre com anestesia e bons cirurgiões, que estancam a hemorragia num segundo. É verdade, não são lendas, e se alguém começar a espalhar calúnias a respeito de uma dessas famílias importantes, cortam-lhe a língua e pronto. Pois bem, apesar de tudo isso, lá eles têm associações muito bem organizadas, que participam de todas as decisões: todos os operários de lá carregam sempre um rádio de pilhas, como se fosse um patuá, e se a rádio disser que há greve, tudo pára, não há ninguém que ouse levantar um dedo; de resto, se alguém tentasse, era capaz de receber uma facada, talvez não imediatamente, mas dali a dois ou três dias; ou então o sujeito levava uma viga na cabeça ou bebia um café e caía morto. Não gostaria de viver naquele lugar, mas sinto-me satisfeito por ter estado lá, porque há certas coisas que a gente só acredita vendo». In Primo Levi, A Chave Estrela, 1978, tradução de Maurício Dias, Editora Schwarcz, Companhia das Letras, 2009, ISBN 978-853-591-400-9/978-858-086-898-2.

Cortesia de ECdasLetras/JDACT