sexta-feira, 15 de abril de 2016

A Oficina dos Livros Proibidos. Eduardo Roca. «Não esperou que respondesse. Ergueu a pequena para a colocar sobre o ombro, como antes fizera com a mulher. Mas esta não se desprendia da mão da mãe. Precisou de dar um puxão para as separar»

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Arredores de Colónia. 1430
«(…) Um rangido fez tremer o soalho aos seus pés. Uma viga havia cedido e as chamas subiam com força em direção ao segundo piso. Olhou para a filha, pálida, assustada. Tossia, engasgada pelo fumo que tudo cobria. Depois, olhou para a esposa; parecia dormir tranquilamente e em paz na cama, por baixo do fumo intenso que roçava o tecto e ia descendo. Pensou que ainda havia algum tempo. Lançou um olhar em redor: o soalho podia resistir um pouco mais. Entre as pranchas de madeira distinguia-se em baixo o resplendor das labaredas, mas não parecia imediato o soçobro. Não havia tempo a perder. Ergueu a mulher e colocou-a sobre o ombro. Segurou depois a menina pela mão e estacou no topo das escadas. Ali, o espectáculo que se lhe apresentou obrigou-o a pensar. O fogo subia, degrau a degrau, lento mas constante. Estás a fazer-me doer, papá. Só os olhos assomavam por cima do lenço. Deu-se então conta da pressão que exercia com a mão. Lamento, filha. Voltemos por um momento. Deixou de novo a mulher sobre o leito e agachou-se até ficar à altura da pequena. Tinha os olhos vermelhos de cansaço e do fumo. Temos de deixar aqui a mamã. Não posso levar as duas. As escadas não aguentarão. Mas o fogo chegará à mamã e não a deixará sair. Não querida. Voltarei logo e salvá-la-ei. Não te preocupes.
Não esperou que respondesse. Ergueu a pequena para a colocar sobre o ombro, como antes fizera com a mulher. Mas esta não se desprendia da mão da mãe. Precisou de dar um puxão para as separar. A criança rompeu a chorar com mais força. As chamas invadiam já as escadas. Uma língua de fogo avançava como um ser vivo, em assaltos constantes. Tomou balanço e, sem pensar, saltou grande parte dos degraus. Caiu sobre o chão de pedra. Uma dor muito forte na planta dos pés fê-lo recuar. Não largou a filha. A casa havia-se tornado um inferno. O fumo e as chamas não o deixavam ver qualquer espaço livre por onde fugir. Na sua frente, a arca de madeira com mantas estava intacta. Deixou a filha no chão. A pequena, desfalecida e meio asfixiada, balbuciava palavras desconexas. Ao abrir o móvel, sentiu como o fogo se agarrava à palma das mãos; o ferro das dobradiças da arca recebia o calor do incêndio e fechava-o como a um tesouro. Incapaz de agir, reparou que as pernas se dobravam. Estava quase a render-se quando o choro abafado da criança o fez voltar a si.
Uma vez mais, colocou a filha sobre ele com um abraço, envolveu uma das mantas por cima com o cuidado de proteger os dois, agarrou-se firmemente ao cobertor e correu; correu até à entrada, ignorando as chamas que os envolviam. Arremeteu contra a porta e esta cedeu facilmente, já quase desfeita. Ao atravessá-la, saiu aos tropeções e caiu aos pés de todos os vizinhos, que tentavam organizar-se para apagar o incêndio. Muitos levavam já os seus baldes de madeira. Desorientado com a visão de toda aquela gente amontoada em seu redor e cm as tochas que se aproximavam e se afastavam na noite húmida, abraçou-se com força à sua pequena. A filha começou a tremer, uma vez que se viu a salvo, mas ainda teve tempo para soltar um lamento: mamã...
O pai pôs-se de pé, como que impelido por uma mola. Voltou a envolver-se na manta e atravessou as chamas que tinham substituído a porta de madeira. Cego pela imperiosa necessidade de salvar a esposa, não via o perigo terrível em que se internava. Atrás ficavam as visões alucinadas dos vizinhos e dos prantos das mulheres; todas se esforçavam por dar atenção à filha. Quando chegou ao interior, só sentiu o fogo. O ar quente quase irrespirável invadia-o todo. Tinha de encontrar maneira de chegar aonde estava a esposa e salvá-la. O terror apoderou-se dele: as escadas tinham desaparecido por completo. Um buraco negro abria-se no tecto e o fumo subia como que absorvido por uma chaminé. Volveu o olhar para o fogo e pareceu-lhe ver que as chamas eram formadas por semblantes luminosos que o observavam e se dirigiam a ele, que o increpavam e queriam apanhá-lo, rostos que engoliam tudo, desmembrando o que fora o seu lar durante tantos anos». In Eduardo Roca, A Oficina dos Livros Proibidos, O Conhecimento pode Mudar o Mundo, 2011, tradução de Óscar Mascarenhas, Marcador Editora, 2013, ISBN 978-989-754-015-8.

Cortesia de MarcadorE/JDACT