jdact
Alexandria.
Egipto. 1799
«(…) Por duas vezes. Desde criança
que coleccionava fitas e tinha caixas e caixas delas: de cetim, de gorgorão, de
veludo, de catassol e jacquard, a
maior parte descoberta em cestos cheios de galões em lojas de antiguidades. Havia
seis metros e meio daquela fita de cetim creme numa bobina manchada de água e
marcada Memorial Black. O condutor avançou pela estrada central do
cemitério, até chegar a uma bifurcação, e aí virou à direita. De olho no
familiar ornamento de granito com a forma de um orbe, Jac atou e desatou o
comprido lenço branco ao mesmo tempo que o condutor percorria, vereda atrás de
vereda, um infindável labirinto de lápides, mausoléus e monumentos. Ao longo
dos últimos 160 anos, toda a família da sua mãe fora sepultada naquele
cemitério vitoriano empoleirado numa cumeada sobranceira ao rio Pocantico. O
facto de ter tantos familiares a dormir o sono eterno naquele luxuriante
cemitério histórico fazia-a sentir-se estranhamente em casa. Desconfortável e
pouco à vontade, mas em casa, naquela terra dos mortos. O condutor parou junto
a uma pequena mata de falsas acácias, estacionou e deu a volta ao carro para
abrir a porta a Jac. A sua determinação debatia-se com a ansiedade. Vacilou
apenas por uns segundos e saiu.
Sob a sombra das árvores, Jac subiu
os degraus do mausoléu ornamentado em estilo grego e tentou enfiar a chave na
fechadura. Não se recordava de ter tido problemas antes, mas no ano anterior
não se lembrava de ter visto aquele rio de ferrugem a emergir do buraco da
mesma. Talvez o escatel estivesse corroído. Ao mesmo tempo que agitava o
palhetão e empurrava, reparou que os espaços entre os blocos de pedra à sua
direita estavam cheios de musgo. No lintel, três cabeças de bronze tinham já
sido corroídas pelos elementos. Os rostos, a Vida, a Morte e a Imortalidade,
observavam-na com sobranceria. Olhou para cada um deles enquanto sacudia a
chave na fechadura. A corrosão que atacara a Morte suavizara-lhe ironicamente a
expressão, em especial em redor dos olhos fechados. O dedo que a imagem
segurava frente aos lábios, silenciando-os para sempre, esboroava-se de ferrugem.
O mesmo acontecia com a sua coroa de papoilas, o símbolo do sono na Grécia
Antiga.
Ao contrário das idosas
companheiras, a Imortalidade era jovem, mas a serpente em torno da sua cabeça,
a morder a cauda, estava mosqueada de manchas verdes e pretas de deterioração. Nada
apropriado para um vetusto ícone de eternidade. Apenas o símbolo a alma humana,
a borboleta no meio da testa da Imortalidade, permanecia intacto. A luta de Jac
com a chave continuou. Começava quase a ficar desmoralizada, perante a ideia de
que a entrada não lhe seria permitida, quando a tranqueta se soltou e a fechadura
cedeu finalmente. Ao empurrar a porta, as dobradiças gemeram como um idoso. De
imediato, o cheiro gredoso a pedra e ar bafiento, misturado com folhas
decompostas e madeira seca, veio ao encontro dela. Jac chamava-lhe o cheiro dos
esquecidos. Deteve-se na soleira e espreitou para o interior. A luz
matutina que penetrava pelas duas janelas de vitral decoradas com lírios roxos
saturava o espaço interior com uma espécie de melancólica cor de cobalto, aguada.
Derramando-se também por sobre o anjo de pedra prostrado no altar. O seu rosto estava
escondido, mas a dor era perceptível pela forma como os seus delicados dedos de
mármore pendiam sobre o pedestal e pelo modo como as asas estavam penduradas, as
pontas roçando pelo chão.
Sob cada
uma das janelas, urnas de alabastro continham as oferendas que Jac trouxera no ano
anterior: ramos de flores de macieira, entretanto secos e murchos. No centro do
pequeno recinto, num banco de granito, estava sentada uma mulher, à espera, observando
Jac, esboçando um sorriso familiar e triste. A luz azul atravessava a forma da mulher
e espalhava-se pelas pernas de Jac. Receava que não viesses. A voz suave
parecia advir do ar em redor do espectro translúcido, de dentro dele». In M.
J. Rose, O Livro dos Perfumes Perdidos, tradução de Eugénia Antunes, Clube do
Autor, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-724-039-3.
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