Poetas
e Amantes
«(…)
Na praça dos mercadores de fumo, uma mulher grávida aborda Khayyam. De véu
arregaçado, não aparenta ter mais de quinze anos. Sem uma palavra, sem um
sorriso nos lábios ingénuos, rouba-lhe das mãos um punhado de amêndoas torradas
que ele acabara de comprar. O passeante não se admira, é uma crença antiga de Samarcanda:
quando uma futura mãe encontra na rua um forasteiro que lhe agrada, ela deve
ousar partilhar da sua comida, pois assim a criança será tão bela como ele, com
a mesma silhueta esguia, os mesmos traços nobres e regulares. O mar atarda-se a
mastigar altivamente as amêndoas restantes, vendo a desconhecida a afastar-se, quando
um clamor chega até ele, incitando-o a apressar-se. Dá consigo rapidamente no
meio de uma multidão enfurecida. Um velho de longos membros esqueléticos já
está no chão, de cabeça descoberta, cabelos brancos esparsos sobre um crânio
curtido; de raiva, de pavor, os seus gritos já não são mais do que um
prolongado soluço. Os seus olhos suplicam ao recém-chegado.
À
volta do desgraçado, cerca de vinte indivíduos, de barbas erguidas, cacetes
vingadores, e, à distância, um círculo de espectadores divertidos. Um deles,
apercebendo-se da expressão escandalizada de Khayyam, lança-lhe no mais
tranquilizador dos tons: não é nada, é apenas Jabel o Longo!, Omar estremece,
um arrepio de vergonha trespassa-lhe a garganta, e murmura: Jaber, o
companheiro de Abu Ali! Um nome dos mais comuns, Abu Ali. Mas, quando um homem
letrado, em Bucara, Córdova, Balkh ou Bagdade, o menciona assim num tom de
familiar deferência, não há confusão possível quanto ao personagem: trata-se de
Abu Ali Ibn Sina, célebre no Ocidente sob o nome de Avicena. Omar não o conheceu,
pois nasceu onze anos após a sua morte, mas venera-o como o mestre indiscutível
da sua geração, o detentor de todas as ciências, o apóstolo da Razão.
Khayyam
murmura de novo: Jaber, o discípulo preferido de Abu Ali!, Pois, ainda que
esteja a vê-lo pela primeira vez, nada ignora do seu destino aflitivo e
exemplar. Avicena via nele o continuador da sua medicina e da sua metafísica,
admirava-lhe a força dos argumentos; censurava-o apenas pelo facto de ele
professar demasiado alto e demasiado brutalmente as suas ideias. Este defeito
valera a Jaber várias permanências na prisão e três flagelações públicas, a
última na Praça Grande de Samarcanda, cento e cinquenta vergastadas na presença
de todos os seus íntimos. Ele nunca se recompusera desta humilhação. Em que momento
descambara da temeridade para a demência? Sem dúvida por ocasião da morte da
mulher. Desde então, foi visto a vaguear em andrajos, titubeando, vociferando
insanidades ímpias. Atrás dele, ranchos de miúdos na risota batiam as mãos, atiravam-lhe
pedras aguçadas que o feriam até às lágrimas. Enquanto observa a cena, Omar não
consegue deixar de pensar: se não tiver cuidado, um dia serei aquele farrapo. Não
é tanto a embriaguez que ele receia; sabe que não se lhe entregará, ele e o
vinho aprenderam a respeitar-se, nunca um dos dois derramaria o outro no chão.
O que teme acima de tudo é a turba, e que ela destrua em si o muro da
respeitabilidade. Sente-se ameaçado pelo espectáculo deste homem aviltado,
avassalado, gostaria de se desviar, de se afastar. Mas sabe que não abandonará
à multidão um companheiro de Avicena. Dá três passos lentos e dignos, adopta a
postura mais desprendida, para dizer numa voz firme, acompanhada de um gesto
soberano: deixai partir esse desgraçado!
O
líder do bando está debruçado sobre Jaber; endireita-se, vem colocar-se
pesadamente diante do intruso. Atravessa-lhe a barba uma profunda cicatriz, da
orelha direita até à ponta do queixo, e é este lado, este lado marcado, que ele
vira para o seu interlocutor, proferindo como uma sentença: este homem é um
bêbado, um infiel, um filassuf!
Silvou esta última palavra como um insulto. Não queremos mais nenhum filassuf em Samarcanda! Ouve-se um
murmúrio de aprovação entre a multidão. Para esta gente, o termo filósofo
designa qualquer pessoa que se interesse demasiado pelas ciências profanas dos
gregos e, de modo geral, por tudo o que não é religião ou literatura. Apesar da
sua juventude, Omar Khayyam é já um eminente flassuf, uma caça muito mais grossa do que o infeliz Jaber. O homem
da cicatriz não deve tê-lo reconhecido, pois afasta-se dele, debruça-se de novo
sobre o ancião, agora mudo, agarra-o pelos cabelos, sacode-lhe a cabeça três,
quatro vezes, parecendo querer despedaçá-la contra a parede mais próxima, e
depois desiste repentinamente. Embora brutal, o gesto fica suspenso, como se o
homem, ainda que mostrando a sua determinação, hesitasse em ir até ao
homicídio. Khayyam escolhe este momento para se intrometer outra vez. Larga o
velho, é um viúvo, um doente, um alienado, não vês que mal consegue mexer os
lábios? O líder reergue-se de um salto, avança para Khayyam, aponta-lhe o dedo
até lhe rocar na barba: tu, que pareces conhecê-lo tão bem, quem és afinal? Não
és de Samarcanda! Nunca ninguém te viu nesta cidade! Omar afasta a mão do seu
interlocutor, com condescendência mas sem brusquidão, para manter o respeito
sem lhe dar o pretexto de uma zaragata. O homem recua um passo, mas insiste:
qual é o teu nome, estrangeiro? Khayyam hesita em revelar-se, procura um
subterfúgio, ergue os olhos para o céu, onde uma nuvem ténue acaba de velar o
crescente de lua. Um silêncio, um suspiro. Perder-se na contemplação, nomear
uma a uma as estrelas, estar longe, ao abrigo das multidões! Já o bando o
cerca, e algumas mãos o roçam, quando ele volta a cair em si. Sou Omar, filho
de Ibraim de Nichapur. E tu, quem és?» In Amir Masalouf, Samarcanda,
1988, tradução de Paula Caetano, Editorial Presença, Marcador Editora, 2015,
ISBN 978-989-754-102-5.
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