quarta-feira, 20 de abril de 2016

A Rainha Descalça. Ildefonso Falcones. «Porque me sinto culpado?, perguntou-se enquanto parava momentaneamente para mudar o baú de mão. Podia ter abusado dela, desculpou-se, como sempre que a culpa o torturava»

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Porto de Cádis, 7 de Janeiro de 1748
«(…) Assim que dom José faleceu, cumpriu-se o ritual do funeral: foram rezados três responsos e o seu cadáver foi atirado borda fora, dentro de um saco e com duas moringas de água atadas aos pés. O capitão ordenou que se desmontasse o beliche e que o escrivão registasse os bens do defunto. Dom José era o único passageiro; Caridad, a única mulher a bordo. Reverendo, disse para o capelão depois de transmitir aquela ordem, fica responsável por manter a negra afastada da tripulação. Mas eu..., tentou protestar o padre Damián. Embora não seja sua, pode aproveitar a comida que o senhor Hidalgo embarcou e alimentá-la com ela, sentenciou o oficia1 depois de ignorar o protesto. O padre Damián manteve Caridad fechada no seu diminuto camarote, onde só havia lugar para a rede que pendurava de lado a lado e que durante o dia recolhia e enrolava. A mulher dormia no chão, a seus pés, debaixo da rede. Nas primeiras noites, o capelão refugiou-se na leitura dos livros sagrados, mas pouco a pouco os seus olhos foram seguindo os raios do candil que, como se tivessem vontade própria, pareciam desviar-se das folhas dos pesados tomos para iluminar a mulher deitada e encolhida tão perto dele.
Lutou contra as fantasias que o assaltavam perante a visão das pernas de Caridad quando se escapavam por debaixo da manta com que se tapava, dos seus seios, que subiam e desciam ao ritmo da sua respiração, das suas nádegas. E, no entanto, quase involuntariamente, começou e tocar-se. Talvez tenha sido por causa do ranger das tábuas onde se prendia a rede, ou pela tensão que se fora acumulando num espaço tão reduzido, a verdade é que Caridad abriu os olhos e toda a luz do candil se centrou neles. O padre Damián corou e ficou quieto por um instante, mas o seu desejo multiplicou-se perante o olhar de Caridad, o mesmo olhar inexpressivo com que agora recebia as suas palavras. Ouve o que te digo, Caridad, insistiu. Procura trabalho. O padre Damián pegou no baú, virou-lhe as costas e seguiu o seu caminho.
Porque me sinto culpado?, perguntou-se enquanto parava momentaneamente para mudar o baú de mão. Podia ter abusado dela, desculpou-se, como sempre que a culpa o torturava. Era apenas uma escrava. Talvez..., talvez nem sequer tivesse sido necessário recorrer à violência. Acaso não eram dissolutas todas aqueles escravas negras? Dom José, o seu amo, reconhecera-o em confissão: deitava-se com todas. Tive um filho com a Caridad, revelou-lhe. Talvez dois, mas não, julgo que não; o segundo, aquele rapaz desajeitado e tontinho, era tão escuro como ela. Está arrependido?, perguntou-lhe o sacerdote. De ter filhos com as negras? O cultivador de tabaco empertigou-se. Padre, vendia os crioulinhos num moinho próximo da propriedade dos padres. Nunca se preocuparam com a minha alma pecadora no momento de mos comprar.
O padre Damián dirigia-se para a catedral de Santa cruz, do outro lado da estreita língua de terra onde se erguera a cidade amuralhada fechando a baía. Antes de virar por uma rua, voltou-se e vislumbrou a figura de Caridad entre a multidão: tinha-se afastado e encostara-se contra um muro onde permanecia quieta, alheia ao mundo. Conseguirá sobreviver, disse para consigo acelerando o passo e contornado a rua. Cádis era uma cidade rica com comerciantes e mercadores de toda a Europa e onde o dinheiro fluía em abundância. Era uma mulher livre e, portanto, aprenderia a viver em liberdade e a trabalhar. Continuou a andar, e quando chegou e um ponto onde as obras da noca catedral, perto da de Santa Cruz, se avistavam com nitidez, parou. Em que ia trabalhar aquela pobre desgraçada? Não sabia fazer nada senão andar de um lado para o outro na plantação de tabaco onde vivera desde os dez anos quando, procedente do reino do povo lucumi, no golfo da Guiné, os assentistas de escravos ingleses a tinham comprado por quatro míseras varas de tecido para a revender no ávido e necessitado mercado cubano. Assim o tinha relatado o próprio dom José Hidalgo ao capelão quando este quis saber a razão de a ter escolhido para a viagem. É forte e desejável, acrescentou o cultivador de tabaco piscando-lhe o olho. E ao que parece já não é fértil, o que é sempre uma vantagem quando saem da plantação. Depois de dar à luz aquele menino tonto…» In Ildefonso Falcones, A Rainha Descalça, 2013, tradução de Rita Custódio e Alex Tarradellas, Bertrand Editora, Lisboa, 2014, ISBN 978-972-252-815-3.

Cortesia Bertrand/JDACT