sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

A Mística do Instante. O Tempo e a Promessa. Tolentino Mendonça. «O luto é um manto de tristeza que oculta dois corpos: o corpo amado que parte e o nosso próprio corpo que, permanecendo, tem, no entanto, absoluta necessidade de acompanhá-lo…»

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«(…) Diversos são, no entanto, os quadros existenciais que nos conduzem às patologias dos sentidos e nos empurram para uma espécie de astenia. Passaremos, em seguida, em revista, mesmo se brevemente, quatro experiências dessa ordem: o sofrimento humano, o luto, o aprisionamento da vida pela rotina ou os efeitos da nossa exposição actual ao excesso de comunicação.

Do lado do sofrimento
Vivemos numa sociedade dominada cada vez mais pelo mito do controlo. E o seu postulado dogmático é este: a receita para uma vida realizada é a capacidade de controlá-la a 360 graus. Não percebemos até que ponto uma mentalidade assim representa a negação do princípio de realidade. Isto para dizer como somos pouco ajudados a lidar com a irrupção do inesperado que hoje o sofrimento representa. Sentimos a dor como uma tempestade estranha que se abate sobre nós, tirânica e inexplicável. Quando ela chega, só conseguimos sentir-nos capturados por ela, e os nossos sentidos tornam-se como persianas que, mesmo inconscientemente, baixamos. A luz já não nos é tão grata, as cores deixam de levar-nos consigo na sua ligeireza, os odores atormentam-nos, ignoramos o prazer, evitamos a melodia das coisas. Damos por nós ausentes nessa combustão silenciosa e fechada onde parece que o interesse sensorial pela vida arde. A dor é tão grande, a dor sufoca, já não tem ar. A dor precisa de espaço, escreve Marguerite Duras nas páginas autobiográficas do volume a que chamou A dor. E descobrimo-nos mais sós do que pensávamos no meio desse incêndio íntimo que cresce. Nas etapas de sofrimento a impotência parece aprisionar enigmaticamente todas as nossas possibilidades. E colocamos em dúvida que este limitado corpo que somos seja o lugar para viver a nossa aventura total ou um fragmento dela que seja significativo. Precisaríamos de recursos que nos capacitassem a vivenciar a incapacidade, provocada pela dor, com outro ânimo e outro olhar.

Do lado do luto
O luto é um manto de tristeza que oculta dois corpos: o corpo amado que parte e o nosso próprio corpo que, permanecendo, tem, no entanto, absoluta necessidade de acompanhá-lo, não só no plano afectivo e simbólico, mas também pela diminuição dos nossos indicadores vitais. Lembro-me da descrição que abre o romance As ondas, de Virginia Woolf, onde há uma frase que, no meu entender, descreve exactamente o que é o luto: a separação entre o céu e o mar. Uma barra de sombra desceu no horizonte, separando o céu do mar, e o grande tecido cinzento ficou marcado por grossas linhas que se agitavam sob a superfície, perseguindo-se num ritmo infindável. A experiência da perda é também um desses segredos do corpo, de si para si, com o qual é-nos cada vez mais difícil lidar. Por um lado, a morte tornou-se um tabu. É mais desagradável referi-la do que soltar uma obscenidade. Ocultamo-la por todos os meios. E depois, por outro, quando nos cabe saber que os que amamos partem, isso mergulha-nos numa dor e numa solidão extremas. Entramos, então, numa espécie de suspensão, de recuo face à vida, de eclipse na nossa relação não só com o exterior, mas com o corpo que somos. Faltam-nos mestres que nos ajudem a avizinhar-nos da morte e do que ela representa para a nossa humanidade. Precisaríamos primeiro de chorar a nossa impossibilidade de consolação (extraordinária frase do Antigo Testamento que São Mateus recupera para o seu Evangelho, na cena da morte dos inocentes: Ouviu-se uma voz em Ramá, uma lamentação e um grande pranto: é Raquel que chora os seus filhos e não quer ser consolada. Precisaríamos depois de chorar e ser consolados, em pequenos passos. E integrar então progressivamente a ausência numa nova compreensão desse mistério que é a presença dos outros na nossa vida». In José Tolentino Mendonça, A Mística do Instante, O Tempo e a Promessa, Colecção Poéticas do Viver Crente, Série JTM, Paulinas Editoras, 2014, ISBN 978-989-673-396-4.

Cortesia de Paulinas/JDACT