«Maldito seja o cardeal que não apontou
sucessor, deixando, assim, Portugal envolto em lágrimas e dor»
«Corria
o ano de 1639 da GNS Jesus Cristo. Há
quase sessenta anos que Portugal vivia sob o domínio espanhol. Ia longe o
desgraçado dia da invasão castelhana, em que a maior parte da nobreza do
nosso reino quase oferecera de bandeja a pátria, em troca de meia dúzia de
moedas de ouro. Morrera António,
Prior do Crato, em Paris, exilado, desgostoso de tanto batalhar para sacudir o
jugo estrangeiro do seu querido país, sem, no entanto, o conseguir. O povo,
esse, jamais esquecera o seu amado Prior do Crato, rei por apenas dois meses e a última esperança para a tão preciosa
independência. Cioso desta, sempre detestou a agregação do nosso reino ao de
Castela, alimentando o rancor pelos nobres, por estes nunca terem feito nada para
modificarem aquela situação. Com a subida ao trono de Filipe IV em 1621, e do seu odioso ministro, o
conde-duque Olivares, o descontentamento tornou-se geral. Este poderoso
ministro, que votava um ódio irracional a Portugal, adoptou uma política de
dureza e tomou medidas que desagradaram profundamente aos portugueses. Choviam
impostos em cima de impostos e o povo não os queria pagar, pois sabia estar a
contribuir para despesas alheias. O conde-duque desejava, com tantos impostos e
humilhações, pôr Portugal de rastos, para depois o poder subjugar pela força
das armas, reduzindo-o a uma simples província de Espanha. O seu desejo era
esse: transformar Espanha num só país, com leis únicas e, assim, tirar a
autonomia a Portugal e à Catalunha. Indo contra os foros do reino jurados
pelo primeiro Filipe, segundo de Espanha, entraram oficiais e tropas
castelhanas no nosso país, com o pretexto de defenderem a costa contra os corsários
ingleses, porque a Espanha estava envolvida na Guerra dos Trinta Anos,
guerreando-se com França, Inglaterra e Holanda.
Outra
das medidas impopulares do conde-duque foi o recrutamento forçado das nossas
tropas para combaterem nessa guerra. Com o passar dos anos, a reacção contra o
domínio espanhol foi-se tornando cada vez maior, como uma bola de neve, até se
tornar numa perigosa avalanche. O povo começou a revoltar-se a partir de 1623. Os motins sucediam-se uns aos
outros, devido a novos impostos e a outros problemas, e o mais perigoso foi o
de Évora. Nessa altura, o povo não recebeu ajuda alguma do clero nem da nobreza,
que apenas procuraram acalmar os ânimos, receosos das medidas que o governo de
Madrid iria fazer cair sobre Évora, o que não tardou a acontecer... O povo
revoltou-se contra eles, desta vez sem razão, pois a maioria do alto clero e da
nobreza compartilhavam do mesmo sentimento: o desejo pela tão ambicionada independência.
Na altura em que a nossa história se desenrola era vice-rainha de Portugal,
Margarida, duquesa de Mântua e prima de Filipe IV e os portugueses nada tinham
a apontar-lhe, pelo contrário, até gostavam dela, por ser amável e muito
religiosa. Para secretário de Estado foi escolhido o odiado e detestado Miguel
Vasconcelos, que conseguia inventar os impostos mais injustos imaginados, para
angariar mais e mais dinheiro para Madrid. Servil adulador do conde-duque,
Vasconcelos odiava e humilhava igualmente a nobreza, o clero e o povo, semeando
ódios e rancores. A sua nomeação dera-se em 1635, pouco tempo depois da de Margarida, e houve grande irritação
dos ânimos de toda a gente. Os impostos que até ali tinham sido pesadíssimos
tornaram-se exorbitantes. O dia estava chuvoso, mas, de tempos a tempos, o Sol
espreitava, um pouco tímido, como se estivesse a jogar às escondidas. Havia um
grande alarido numa parte bem conhecida da bonita e airosa Lisboa. Soldados castelhanos
extremamente irritados, não só com a chuva, mas principalmente pelo motivo por
que se encontravam ali, mexiam-se de um lado para o outro, interrogando os
habitantes e invadindo-lhes as casas, sem cerimónia alguma. Quiero ese enmascarado preso hoy! El fué
visto por aquí y no estará muy lejos. El ministro me dio orden para matarlo, si
resistir a la prisión, afirmou o capitão dos soldados, cujo bigode
farfalhudo tremia de nervosismo cada vez que falava. Era alto e ruivo, de
feitio irritadiço, e empurrava, impaciente, quem lhe surgia à frente. Um grupo
de populares rodeava-os, indignados com a confusão e refilando com eles. Já lhes
dissemos mil vezes que o capitão Gualdim não está aqui! O que é que ele fez desta vez?, perguntou uma mulher baixa e
robusta, em ar de desafio. Um soldado português voltou-se para ela e disse a
meia voz, com os cantos da boca tremendo, como se tivesse uma imensa vontade de
rir: O capitão Gualdim ontem fez uma emboscada a Vasconcelos quando ele se ia
deitar. Deixou-lhe espetada na almofada da cama uma mensagem com ameaças
terríveis e o ministro está doido de raiva... Os olhos das pessoas brilharam de
prazer e reconhecimento.
Um
velho, todo vergado pelo peso dos quase noventa anos e cabelos brancos como a
neve, levantou a mão trémula ao céu. A luz que tinha nos olhos denunciava bem a
vida que no corpo lhe faltava. Um dia, o rei Sebastião há-de voltar no seu
cavalo branco para arrancar o país desta escória que nos governa! Os outros
concordaram com ele, mais por respeito do que por outra coisa. Bem sabiam o
quanto era impossível o que o velho dizia. O monarca Sebastião, se ainda
estivesse vivo, devia estar tão idoso quanto ele; mas o sentimento é que
contava... Naquele tempo ainda havia uma grande parte da população que acreditava
que o rei desaparecido em Alcácer Quibir, em 1578, voltaria numa manhã de nevoeiro, tão jovem quanto partira,
para libertar Portugal dos espanhóis. Os jesuítas, sobretudo, faziam do
sebastianismo uma arma perigosa, pois alimentavam, assim, as esperanças da
população na restauração de Portugal. Desconfiava-se deles nos motins de Évora,
na tão falada revolta do Manuelinho, pois eles eram inimigos mortais do domínio
espanhol e havia razão nessas desconfianças. Os eclesiásticos tentavam excitar
o povo contra os espanhóis, de todas as maneiras possíveis. Apesar da rivalidade
existente entre Jesuítas e Dominicanos, ambas as ordens haviam achado por bem
trabalharem em conjunto na restauração da pátria. Recorrendo a profecias e com
o auxílio do sebastianismo, pressagiavam a queda do domínio espanhol e o
regresso de um rei português, João, duque de Bragança, que os mais
crédulos acreditavam ter sido encarnado pelo desditoso Sebastião». In Isabel
Ricardo, O Último Conjurado, Saída de Emergência, 2014, ISBN 978-989-637-676-5.
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