De
Portugal para S. Tomé e Príncipe por ordem d’el-rei João II em 1493
«(…)
Reza a história que, quanto ao episódio de Toledo, as confissões foram
arrancadas pelos inquisidores no clima de tortura e a reconstituição foi feita
conforme a imaginação destes, independentemente de não se ter dado por falta de
criança alguma, e muito menos se terem visto restos mortais no local que foi indicado
ao inquisidor. Acontecimentos desses eram férteis pela Europa fora e não de
exclusividade castelhana. Nessa matéria, a Igreja não falava a uma só voz.
Havia vozes ao mais alto nível que se insurgiam contra tais práticas que
visavam única e exclusivamente a fomentação de ódios. Já tinha acontecido, no
ano mil duzentos e quarente e sete, com a contestação papal, onde este afirmava
não haver fundo de verdade no tal ritual e considerava mesmo que tudo não
passava de lendas. Era uma posição que, ocasionalmente, Roma vinha a público
reiterar. O mistério prevaleceu até ao ano mil setecentos e cinquenta e nove,
altura em que foi publicado o resultado de uma investigação exaustiva, pedida
pelas comunidades judaicas europeias, ao cardeal Ganganelli, mais tarde papa
Clemente XIV, onde se concluiu que tais acontecimentos nunce tiveram lugar em
qualquer momento da História da Europa. Em termos imediatos, a acusação valeu
aos visados a fogueira e o enforcamento, um pouco à semelhança daquilo que
acontecia por todo o reino. Para além da consequência imediata, isto também
constituía mais um motivo para atirar a população contra os judeus e conversos.
O amanhã é uma incógnita e nunca sabemos
quando é que o destino troca as voltas aos nossos pés e nos traz de volta para
calcar um vestígio antigo que a nossa lucidez procura esconder face à incapacidade
de esquecer.
Invariavelmente, a minha avó emocionava-se a cada vez que contava a forma como
tinham perdido tudo. Sua tez franzida, os movimentos das suas mãos e sublinhar
as suas palavras, produzidas num tom de voz visivelmente emocionado, mas nem
por isso menos segura de si. O seu rosto reabria-se lentamente quando passava a
falar da nova vida, apesar do trauma da conversão. Com o seu pé direito que
assenta apenas sobre a ponta e lhe confere um andar característico, o rabino
Isaías..., não percebo por que carga de água insistem na palavra rabino se o homem rasgou as bases da lei
moisaica e adoptou as leis cristãs, se calhar pela sua rabugice, mas pronto...,
pronto, era assim tratado e não vou estar agora a questionar. Na altura, um
fervoroso cristão-novo, apareceu com a mão do gato, correu o ferrolho, abriu a
cancela de recorte de ferro que dava acesso à sua casa e atravessou o caminho
dos meus antepassados quando estes regressavam com as mãos vazias, tal como das
outras vezes, desde que se converteu, assemelhando-se a um demónio pronto a estrangular
as crianças, a minha avó diz ter sentido isso como criança que era, e seduzir o
meu bisavô como uma autêntica rainha do mal.
Congratulou-se
com a conversão e estendeu-lhes a sua mão camaleónica. Tempo de personalidade
decorosa, de reputação inquestionável era tão pretérito como os seus
inquestionáveis ensinamentos sobre os diversos versetos da Tora. Deixou-se levar
pela correnteza da conversão que arrastou vala abaixo os seus próprios
princípios e crença, ao navegar pelo cano cego, numa tentativa de purificar o
próprio sangue e quiçá a alma. De pé atrás, fizeram mão morta à oferenda do
antigo rabino e viram minimizada a penúria. Ao contrário dos meus antepassados,
numa jogada de antecipação, mostrou que a sua fé era mutante. Isso permitiu que
ele conservasse o seu padrão de vida no meio da procela e assim estava com os
pés na algibeira. A sua mão estendida, triunfalmente, para os meus
antepassados, constituía uma espécie de recompensa pelas várias tentativas
falhadas para os conduzir pelo caminho da conversão. Para os meus antepassados
a fé era inegociável, a menos que isso significasse manter a capacidade de
continuar a respirar para depois se recomporem e retomarem o caminho que os
sustentava espiritualmente». In Orlando Piedade, Os Meninos Judeus
Desterrados, De Portugal para S. Tomé e Príncipe por
ordem d’el-rei João II em 1493, Edições Colibri, 2014, ISBN 978-989-689-450-4.
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de Colibri/JDACT