quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Os Meninos Judeus Desterrados. Orlando Piedade. «Foram obrigados a trabalho redobrado e, enquanto descalçavam as botas, a família desintegrou-se ao apanharem embarcações diferentes. Os primeiros conseguiram alcançar os seus destinos; quanto à minha avó e aos meus bisavós…»

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De Portugal para S. Tomé e Príncipe por ordem d’el-rei João II em 1493
«Sobre o seu auto-retrato ela diz que, se tivesse olhos azuis, cabelos loiros, estatura alta e corpo esculturalmente definido como eu, ainda hoje, aos oitenta anos, seria senhora para muitos pretendentes. Uma casa sem nome, mas cheia de rostos: comecemos pelo lado carrancudo que se dá pelo nome de Vasquez e é o meu pai. As estórias contadas pela minha avó explicam o humor dele, mesmo assim, gente nobre. Curva-se para falar connosco, não só pela estatura alta, mas também porque sabe respeitar e medir as palavras. Paredes meias com o primeiro está o insonso, é o da minha mãe, Isabel é o nome dela. A minha avó nunca se cansa de dizer que fazem boa vizinhança. Com ela nunca sei quando devo avançar ou recuar, só se expressa usando as cordas vocais. Outros sentidos resumem-se a blocos de gelo, até mesmo a voz é monocórdica. Não sei se um dia conseguirei fazer uma leitura acertada. Ah, a minha avó é Eva, ganhou este nome quando foi conduzida, contra a sua vontade, à pia baptismal, é um clássico, conta esses acontecimentos pelo menos uma vez, por mês. É, portanto, uma cristã-nova. Ajuda a classificar todos os rostos, mas não aceita que o dela seja classificado; mas pronto... Eu diria que tem cara de avó, sempre com uma estória na manga, muitas vezes repetida, mas continuamos a escutar pacientemente. Ai de nós se assim não for. Está sempre disponível, principalmente no que à leitura de rostos diz respeito. Com seis anos, o do meu irmão Javier está classificado como impávido. Ignora o carrancudo, a insonsa, as estórias da avó e está sempre na dele; a excepção reside nos momentos de birra.
Eu sou Raquel e tenho quinze anos. A minha avó diz sempre que somos cúmplices uma da outra. Passa a vida a tentar convencer-me de que sou muita parecida com ela quando era jovem, tudo para dizer que também era bem-humorada. E gira também, claro! Era diz ainda que sou inteligente porque consegui reunir em mim o melhor que os meus pais têm fisicamente, para depois complementá-lo com a simpatia e boa disposição que, aí, já vem dela. A sério, ela é um número e o pessoal diverte-se imenso com ela. Sobre o seu auto-retrato ela diz que, se tivesse olhos azuis, cabelos loiros, estatura alta e corpo esculturalmente definido como eu, ainda hoje, aos oitenta anos, seria mulher para muitos pretendentes. Muito sinceramente, a avaliar pelas estórias que ela conta, acho que ela não teve a juventude que desejava e hoje procura viver um pouco disso através de mim. Até não desgosto, ela ganha um ar mais jovial. Caiada de branco e com o rodapé azul vivo, a nossa casa destoa na paisagem circundante, geralmente verde, sobretudo durante a Primavera. Aqui e ali uma ou outra casa; a mais próxima é a do rabino Isaías, seus descendentes, claro! Aprendemos a tê-la como do antigo rabino e assim era. Estranha forma de apelidar um converso. Todas as casas nas redondezas eram, igualmente, sem rostos externos nem nomes, mas cada uma tem uma história diferente e esconde o seu segredo.
A história da nossa é contada pelas palavras da minha avó e remete-nos, numa primeira fase, à sua infância, altura em que lhes apresentaram duas hipóteses: a conversão ao cristianismo, ou a expulsão do reino de Castela. Como verdadeiros seguidores da lei mosaica, optaram por seguir a via de expulsão esperançados em alcançar o norte de África onde poderiam, livremente, alimentar-se espiritualmente. Desfizeram-se à pressa de todos os bens que possuíam, entre eles a casa da família, em troca de dois burros, alguns tecidos e roupas brancas. Seguiram com tanas outras famílias, gentes conhecidas e desconhecidas, até ao porto de embarque. Ela, na altura ainda miúda, e os seus pais, meus bisavós portanto, tiveram imensas dificuldades na fronteira, tal como todos os outros que se faziam acompanhar de crianças. Aos outros impuseram-lhes uma vistoria humilhante, até às entranhas, e a quase todos provocavam-lhes o vómito, porque descobriram que muitos engoliam ouro e prata, única forma possível de conseguir transpor a fronteira com esses metais preciosos, algo que era proibido. Bem, conforme dizia, os meus bisavós, por se fazerem acompanhar de crianças, passaram poucas e boas. Coincidência das coincidências, era a altura em que fervilhava o episódio de Toledo, onde se consta que mentes fantasiosas e ávidas de motivos para acusar e trucidar judeus e conversos, convém dizer que, para os anti-semitas, judeus e conversos são a mesma coisa, orquestraram o sacrifício de uma criança cristã, alegando que o seu coração fora cortado com o objectivo de desenvolver um feitiço destinado a destruir o cristianismo e fazer valer o judaísmo.
Foram obrigados a trabalho redobrado e, enquanto descalçavam as botas, a família desintegrou-se ao apanharem embarcações diferentes. Os primeiros conseguiram alcançar os seus destinos; quanto à minha avó e aos meus bisavós, foram apanhados por uma tempestade de magnitude tal que se viram obrigados a regressar. As autoridades eclesiásticas não perderam tempo: conduziram todo o mundo à pia e obrigaram-nos a permanecer no reino. Entenderam que era um sinal divino que não podia ser negligenciado. Desta forma, os meus antepassados perderam a casa que era da família pelo que a permanência no reino obrigava a um novo começo, apoiados em dois burros e nuns metros de tecido branco. Não tenho o mesmo dom que tem a minha avó a contar as suas estórias. Longe disso! Diz o povo que quem conta um conto acrescenta um ponto, agora imaginem a minha tentativa de a imitar. Ela é exímia nisso e confere o seu cunho pessoal e cada palavra, frase, parágrafo...» In Orlando Piedade, Os Meninos Judeus Desterrados, De Portugal para S. Tomé e Príncipe por ordem d’el-rei João II em 1493, Edições Colibri, 2014, ISBN 978-989-689-450-4.

Cortesia de Colibri/JDACT