Contos.
A Ruiva
«A taberna do Pescada ficava mesmo
em frente ao cemitério dos Prazeres, e era frequentada pela gente do sítio,
especialmente de noite, à hora em que os cabouqueiros e os britadores abandonam
os seus trabalhos e entram na cidade, em ruído. Tratava-se então de levantar um
muro de cantaria que fosse como a fachada opulenta da gélida cidade de
cadáveres; na planura que medeia entre o cemitério e as terras, o terreno via-se
revolto; os carros de mão jaziam esquecidos; os montes de pedras miúdas e de
argamassas antigas tornavam penoso o trânsito. Na lama constante do caminho,
eram profundos os sulcos que as seges de enterro deixavam até à porta do
cemitério, escancarada sempre, como a goela de um plesiossauro faminto. Em
anoitecendo, tudo aquilo era de uma contemplação lúgubre e misteriosa, em que
se adivinhava o trabalho de milhões de larvas; o ladrar dos cães tinha um eco
desolado, que tornava depois mais sinistro o silêncio; a porta fechava-se sem
rumor, girando em gonzos discretos, e uma luz esmaecia na treva, no fundo dos
ciprestes e dos túmulos, diante de um santuário deserto, onde o Cristo, do
alto, olhava vagamente o guarda-vento. Começavam então a chegar à tasca os guardas
encanecidos no mester de receber enterros, graves nos seus uniformes fatídicos,
os coveiros angulosos e vesgos
lançando-se de si um fétido deletério; e cada um, dando boas-noites à tia
Laureana, ia sentar-se à banca, no seu lugar, chupando pontas de cigarro e
pedindo decilitros. Todas as noites a casa se enchia e o aspecto era sempre o
mesmo.
Ao fundo,
encostada ao balcão forrado de zinco, a tia Laureana, mulher de grandes seios e
arrecadas, que tinha a especialidade dos pastéis de bacalhau, e pernas másculas
saindo de grosseiras saias de baetilha; ao canto o cego de chapeirão derrubado,
atitude fria, faminta, dolorida e apagada, a rebeca nos joelhos, a manta de
riscas ao ombro, a eterna noite nas feições. O grupo dos trolhas, junto da
porta, discutia o preço das couves e o número de ventres perfurados com facas
de ponta, durante a semana. Zé Claudino tinha a palavra; a sua autoridade
indiscutível de orador popular fazia-lhe cair dos lábios, como um rosário de
sons, as palavras graves, indecorosas, chulas e poéticas, em misto turbulento e
inteligente. Bêbedos extraordinários falam de tudo e descrevem parábolas no
solo, com a sombra dos seus corpos embrutecidos. Dois ou três embirram com a
sombra. Mete-te comigo, resmungam; cai nessa, minha tirana! A velhaca, comentam,
tem agora a mania de ir adiante de mim. Esta manhã era atrás. Mas não me larga!
Bêbeda! Era o que me faltava! Súcia de marmanjos! E, insistentes, aos
ziguezagues: Persegue-me, anda, persegue-me, que levas dois butes. Lá isso,
ouve-se outro dizer na rua, lá isso não digo eu... Que ele há um Deus que nos
governa: é boa! Eu entrava, cumprimentando os velhos conhecimentos. Ditosos
olhos, estudantinho!, dizia um. Ó seu casaca!, fazia outro.
Seja bem
aparecido e pague-me dois dedos de marujo. Um velho fressureiro, com o olho
esgazeado de sicário experiente, tocando-me o braço com a sua mão
ensanguentada, ia aconselhando baixo: Prove-me do branco, doutor; prove-me do
branco; que é uma reinação! Com um pastelinho, não lhe conto nada... Aqueles
eram os meus amigos, perigosos amigos contraídos na intimidade do vício e no
surdo deboche das tascas. Sentava-me. A Laureana vinha, sorrindo, servir-me; e
o seu olho pardo, sequioso, acariciava a brancura do meu pescoço, apetecia os
meus cabelos de um louro-claro, tons insípidos, sob as abas do chapéu
esburacado. O seu hálito empestava a dez passos, trazido nas asas do seu amor
quente e brutal, de uma infâmia cheia de mercancia. Ouvindo-me pedir qualquer
coisa, o olhar adoçava-se-lhe como o dessas gatas a quem coçamos o crânio; e eu
sentia exalar-se dela um fartum de gorduras fundidas, que me perturbava. Nessa
noite chegou o tio Farrusco. Era coveiro e o mais asqueroso, o da vala; aspecto
repelente, perfil áspero e cortante, descarnadas as faces, as mãos aduncas e
gastas, cheias de terra e de cabelos.
Sobre
a testa, de uma polegada de largo, caíam grenhas fermentadas; as orelhas
desapareciam-lhe sob a lã sebácea de um barrete cinzento; por um rasgão da
camisa, furava uma moita de cabelos hirsutos, brancos como um pé de junco seco,
nascido entre as pedras de um muro arruinado de azenha decrépita. Quase lhe
ficavam pelas esquinas a que se encostava os farrapos em que embrulhava o corpo
esquelético e lustroso, como de couro curtido. Um cabouqueiro tostado, perfil
adunco de coruja, bateu-lhe no ombro: Tio Farrusco! O outro tentou aprumar a
estatura lassa na moleza da embriaguez, e resmungou: Que é lá isso, patego? O seu olho envidraçado não podia
fitar; os fios de baba desciam-lhe, lentos, aos cantos da boca. Olá!, fez o cabouqueiro, a maré encheu. E sacudia-o. Mais
bêbedo é você, grande cavalgadura!»
In
Fialho
de Almeida,
A
Ruiva e Outras Histórias,
1881, Contos, Luso Livros, Nova Forma de Ler, ISBN 978-972-370-963-6.
Cortesia de
LLivros/JDACT