quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Justine. Quarteto de Alexandria. Lawrence Durrell. «… dois ficaram assim por um instante, ela a olhar para os jogadores, ele a olhar para ela. Depois, ela voltou-se com um suspiro de resignação, e dirigiu-se prudentemente para o mundo do ruído e da luz»

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«(…) Recordo aquela época em que o mundo conhecido apenas existia para nós quatro; os dias não passavam de espaços entre sonhos, espaços entre o marcos movediços do tempo, das ocupações, da tagarelice... Um fluxo e refluxo de assuntos insignificantes, uma vadiagem, sem finalidade, ao longo de coisas mortas, Sem nos levar a parte nenhuma, sem nada nos oferecer uma existência que esperava de nós o impossível: que existíssemos! Justine dizia que tínhamos sido apanhados pela projecção de uma vontade demasiado poderosa e demasiado intencional, para ser humana, a zona de atracção que Alexandria criava para aqueles que tinha escolhido como seus símbolos. Seis horas. Nos arredores da gare, há uma confusão de silhuetas brancas. Na Rua das Irmãs, as lojas enchem-se e esvaziam-se como grandes pulmões. Os raios desmaiados do Sol trespassam as longas curvas da esplanada, e os pombos, ébrios de luz, juntam-se nos minaretes para banharem as asas nos derradeiros esplendores do poente. Nos balcões dos cambistas, tilintam moedas. Os gradeamentos de ferro das janelas dos bancos estão ainda demasiado quentes para uma pessoa lhes poder tocar. Ouve-se o rodar das carruagens que levam os funcionários, com uma flor vermelha na botoeira, a caminho dos cafés da beira- mar. É a pior hora de suportar, quando do meu balcão eu a vejo caminhar na direcção da cidade, com as suas sandálias brancas, ainda meio adormecida. A cidade sai da sua concha como uma velha tartaruga, e deita uma olhadela cá para fora. Por um momento, abandona os pedaços arrancados da sua carne, enquanto de uma ruela escondida junto do matadouro, dominando os mugidos e balidos, sobem fragmentos nasalados de uma canção de amor síria; quartos de tons penetrantes, como se produzidos por um nariz cheio de orifícios. Depois, homens fatigados que levantam os toldos nas varandas e dão um passo, piscando na luz pálida e quente,- flores lânguidas duma sesta angustiosa, cabeças doloridas pelos húmidos sonhos, sonha dos nos leitos torpes. Tomei-me num desses pobres amanuenses da consciência, um cidadão de Alexandria. Ela passa debaixo da minha janela, sorrindo a alguma secreta satisfação, abanando docemente as faces Com o pequenino leque vermelho. Um sorriso que, provavelmente, não tornarei a ver, até porque, quando está acompanhada, limita-se a rir, descobrindo os seus magníficos dentes brancos. Mas este sorriso triste e furtivo tem uma qualidade que a ninguém ocorrerá atribuir-lhe, malícia! Seria mais fácil concebê-la de uma natureza mais trágica, sem qualquer espécie de humor vulgar. Mas a recordação obstinada desse sorriso faz-me duvidar, presentemente, do acerto da minha observação.
Tinha-a encontrado frequentemente e conhecia-a bastante bem, de vista, antes de nos relacionarmos: a nossa cidade não permite o anonimato, quando se possui um rendimento anual superior a duzentas libras. Vejo-a sentada, sozinha, à beira-mar, lendo um jornal e trincando uma maçã; ou no vestíbulo do Cecil Hotel, entre as palmeiras poeirentas, com uma capa debruada a prata, que usava lançada sobre as costas, como os camponeses, e com o longo indicador enfiado na barbela. Nessim tinha parado à porta do salão de dança, cheio de luz e de música. Não a tinha visto. Num nicho protegido pelas palmeiras, um par de velhos jogava o xadrez. Justine parara para observá-los. Não sabia as regras do jogo, mas a aura de concentração e de imobilidade que envolvia os jogadores fascinou-a. Permaneceu ali, um longo momento, diante dos velhos, surdos ao mundo e ao universo cheio de música, como indecisa e não sabendo em qual desses mundos entrar. Finalmente, Nessim aproximou-se docemente para lhe tomar o braço, e os dois ficaram assim por um instante, ela a olhar para os jogadores, ele a olhar para ela. Depois, ela voltou-se com um suspiro de resignação, e dirigiu-se prudentemente para o mundo do ruído e da luz.
E noutras circunstâncias igualmente menos honrosas para ela e para nós; e, contudo, como é bem verdade que as mulheres mais másculas e engenhosas podem ser maravilhosamente femininas! Ela não cessava de me falar nessas rainhas terríveis que deixavam, ao passar o odor amoniacal dos seus amores incestuosos como uma nuvem flutuando no inconsciente de Alexandria. As gatas gigantescas devoradoras de homens, como Arsinoé, eram as suas verdadeiras irmãs. E, contudo, por detrás das acções de Justine havia outra coisa, o produto de uma filosofia trágica mais amadurecida, a ideia de um equilíbrio, mercê do qual a moral devia suplantar a personalidade e as suas tendências perversas. Era a vítima sincera das suas dúvidas corajosas. E, apesar de tudo, veio perfeitamente a ligação entre o quadro de Justine, debruçando-se sobre o vaso imundo onde flutuava um féto, e a pobre Sofia de Valentino, morrendo por um amor tão perfeito quanto insensato. Georges Pombal, empregado subalterno do consulado, partilha comigo um pequeno apartamento na Rua Nebi Daniel. O facto de ser possível que possua uma coluna vertebral toma-o um fenómeno raro da sociedade diplomática. Para ele, as chinesices do protocolo e as recepções, tal como num pesadelo surrealista, possuem um encanto exótico. Vê a diplomacia através dos olhos de Douanier Rousseau. Toma parte no jogo sem deixar que o que lhe resta de personalidade sofra com isso. Creio que o segredo do seu sucesso reside na sua preguiça, que toca o sobrenatural». In Lawrence Durrell, Justine (Quarteto de Alexandria), Editora Ulisseia, Lisboa, 2007, ISBN 978-972-568-496-2.

Cortesia de Ulisseia/JDACT