O
miolo do leão
«Conferência
lida em Florença no dia 17 de Fevereiro de 1955, para a secção florentina do Pen Club, a convite de Anna
Banti; foi repetida a seguir em diversas cidades italianas. Publicada na
revista Paragone, nº 66,
Junho de 1955»
«Fala-se com certa frequência de
um problema do personagem na nossa literatura de hoje: personagem positivo ou
negativo, novo ou velho. É uma discussão que, se para alguns pode parecer ociosa, sempre será cara,
ao contrário, aos que não separam os seus interesses literários de toda a
complexa rede de relações que liga entre si os diversos interesses humanos.
Porque, entre as possibilidades que se abrem para a literatura agir na história,
esta é a mais sua, talvez a única a não ser ilusória: compreender para que tipo de homem ela, história, com seu labor múltiplo,
contraditório, está preparando o campo de batalha, e ditar-lhe a sensibilidade,
o impulso moral, o peso da palavra, a maneira como ele, homem, deverá olhar à
sua volta no mundo; aquelas coisas, enfim, que somente a poesia, e não, por exemplo,
a filosofia ou a política, pode ensinar. Claro que esse tipo de homem que
uma obra ou toda uma época literária pressupõe, subentende, ou melhor, propõe,
inventa, pode até não ser um daqueles personagens íntegros que são prerrogativa
do romance ou do teatro, mas vivos também, ou talvez sobretudo; aquela presença
moral, aquele protagonista não menos identificado que figura nas poesias líricas
ou nas prosas dos moralistas, aquele verdadeiro protagonista que também em
tantos romancistas, começando por Manzoni ou pelo Verga maior, não se
identifica com nenhum dos personagens. Portanto, antes de nos perguntarmos se
haveria personagens característicos da literatura italiana de hoje, e quais
seriam eles, temos de começar a nos perguntar se haveria, e qual seria, um
protagonista verdadeiro, um tipo de homem que ela, mesmo que implicitamente, pressuponha
ou proponha.
A dificuldade para dar uma
resposta a essa pergunta é a mesma que deparamos toda a vez que colocamos, para
a literatura italiana de hoje, uma questão geral, um julgamento sobre a sua situação,
uma previsão quanto à linha de seu desenvolvimento. Esse período literário a
que muitos apõem a marca imprecisa do neorrealismo
e que, seja lá como for, caracteriza-se por uma retomada de interesses num
sentido realista e por um predomínio, em termos de quantidade e ressonância, da
narrativa sobre os outros meios de expressão, parece recusar-se a deixar-se
simbolizar e resumir numa fisionomia moral típica, num carácter humano específico.
E não é verdade que a tendência a expressar-se em caracterizações precisas de
homens e mulheres tenha sido sobretudo do Oitocentos romântico, com a aura do
herói ou os altos e baixos do filho do século,
na Itália, após os últimos rebentos da estirpe romântica, como o homem dannunziano ou o homem crepuscular, a história literária
recusa-se a deixar-se ler nesse sentido. Porque justamente a literatura do
passado recentíssimo, a hermética, como poucas antes tão desprovida de pessoas,
uma literatura de paisagens, de objectos, de estados de ânimo sombrios, uma
literatura da ausência, como foi dito, até mesmo ela propunha uma
imagem de homem bem caracterizada (ainda que caracterizada negativamente, para
nos remetermos a um verso famoso) e ligada (embora negativamente) aos tempos. O
homem hermético, o homem que não se
deixa subjugar por outras razões a não ser pelas de seus mínimos sobressaltos
previsíveis até a medula, que descobre a sua verdade sempre à margem do que
entulha o cenário, esse homem sovina de sentimentos e sensações, mas sem outra concretude
além deles, esse homem sem pontos por onde possa ser pego, protegido por uma carapaça
áspera e siliciosa ou escorregadia como uma enguia, esse homem que parecia construído
propositadamente para atravessar tempos infaustos e realidades não compartilhadas
com um mínimo de contaminação e a um só tempo com um mínimo de risco, foi
precisamente um caso típico de proposta da literatura para resolver os
problemas das relações do homem com o seu tempo, numa oposição à história que o
juízo de hoje nos revela ser mais complexa do que parecia, ambivalente.
Temos de dizer que o homem hermético é o último personagem
verdadeiro que a literatura italiana
soube expressar? Claro que não penaremos para descobrir sua presença no
centro das experiências dos mestres da nova narrativa, precisamente nas obras
por meio das quais se deu uma saída do clima hermético rumo às novas poéticas
realistas. O abstrato furor do Silvestro de Conversa na Sicília [Conversazione
in Sicilia] é o do homem que sente a tragédia da história mas só pode se
mover à margem dela, participar dela apenas liricamente; e decerto não mais
integrado na realidade histórica é o Ene Dois de Os homens e os outros,
por mais que maneje bombas e frequente reuniões. E Pavese, que em polémica anti-hermética escreve poemas com operários e
barqueiros e bebedores, nunca nos deixa esquecer que o protagonista não é o
operário ou o barqueiro ou o bebedor, mas o homem que os está observando de viés,
da mesa oposta da taberna, e que gostaria de ser como eles mas não sabe. É
o confinado Stefano, é o professor Corrado de Antes que o galo cante [Prima
che il gallo canti], o homem que sabe que tem de ficar à margem lendo a
história que os outros vivem, com os olhos meta-históricos do poeta intelectual.
E assim, naquele que definiremos como o filão florentino ou toscano de nossa
nova narrativa, nem é tanto a minuciosa anotação realística que conta de facto,
mas o amparo de memória ou nostalgia por meio do qual ela é filtrada, a subtil
amargura da precariedade de uma posse ou de uma relação: é sempre o homem hermético,
um tantinho mais cordial, com inquietudes mais discretas que aquelas de
Vittorini e Pavese, a dominar a cena. Ainda não falamos do escritor que antes
de todos eles começou a escrever romances e que mais que qualquer outro apostou
explicitamente numa representação típica dos homens de seu tempo: isto é,
Moravia. Mas, mesmo nele, como não aproximar a não participação moral de seus
protagonistas, sua careta de habitual e tedioso desgosto, aceito como um dado
que não pode ser facilmente eliminado, como não aproximá-la do tema que é próprio
de toda a sua geração literária: o tema justamente da não adesão, da relação negativa com o mundo? A narrativa italiana contemporânea nasceu, portanto, sob o
signo de uma integração malograda: de um lado, o protagonista lírico-intelectual-autobiográfico;
do outro, a realidade social popular ou burguesa, metropolitana ou agrícola-ancestral.
As tentativas de Bildungsroman político, as histórias dos
noviciados conspirativos ou partigiani de um protagonista
lírico-intelectual em contacto com o proletariado, que se aglomeraram nos primeiros
anos após a Libertação, pareceram o caminho mais natural para testemunhar a Resistência,
mas não conseguiram representar com acentos de verdade nem o tormento interior dos
protagonistas nem aquele épico e colectivo do povo». In Italo Calvino, Assunto
Encerrado, Una Pietra Sopra, tradução de Roberta Barni, Companhia das Letras,
2009, ISBN 978-853-591-458-0.
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