Mitos
«Não é preciso procurar muito; basta digitar Flor de la Mar no Google e espreitar a primeira página de
resultados: informações incríveis sobre um fabuloso tesouro perdido nas águas
indonésias, afundado com a nau carregada com o saque de Malaca, na qual Afonso Albuquerque
regressava à Índia. Uma das páginas coloca-o no top 10 dos tesouros perdidos e
diz tratar-se do mais rico tesouro ainda
por encontrar, constando de mais de 54 toneladas de ouro, avaliadas em 216
mil milhões de dólares; outro fala em elefantes
e tigres em ouro maciço, valendo mais de mil milhões de libras; outro ainda
menciona 60 toneladas de ouro e 200 cestos cheios de diamantes, rubis e
esmeraldas, o maior tesouro alguma vez transportado pela marinha portuguesa.
São dados que ocasionalmente aparecem na imprensa e que inflamam a imaginação
de caçadores de tesouros e do público em geral. Nunca foi, que eu saiba, motivo
para uma adaptação cinematográfica, mas já serviu de mote para um romance
histórico e, até, para um disco do Vitorino. Que verdade há em tudo isto?
A Flor de la Mar era uma nau portuguesa de 400 t, construída em
Lisboa, que fez a sua primeira viagem em 1502,
na armada de Vasco da Gama. Viria a repetir a jornada entre Portugal e a Índia
por diversas vezes, tendo sido, portanto, submetida a grande desgaste. Os primeiros
problemas surgiram em 1506, no regresso a Portugal, por alturas da passagem do
cabo da Boa Esperança. Reparada em Moçambique, voltou à Índia e foi colocada
novamente ao serviço. Fez parte da armada que, em 1509, infligiu uma memorável derrota a uma frota egípcio-otomana
que surgira no Índico para expulsar os Portugueses, a célebre batalha de Diu.
Aparentemente, era a nau preferida do vice-rei Francisco Almeida, que a terá
escolhido para fazer a sua viagem de regresso a Portugal. Mas isso não veio a ocorrer
e a Flor
de la Mar ficou ao serviço do novo governador, Afonso Albuquerque, que
lhe deu largo uso. Conhecem-se alguns pormenores sobre a sua tripulação,
nomeadamente quem era o seu condestável, o escrivão a bordo e o mestre.
Em 1511, os problemas da Flor
de la Mar eram conhecidos, mas o governador utilizou-a na expedição a
Malaca. Em Janeiro do ano seguinte, quando se preparavam para regressar a Goa,
os Portugueses hesitaram em carregá-la com o espólio do saque da cidade. Os
sinais de degradação eram visíveis a todos e, pelo que contam os cronistas, ninguém
queria embarcar nela. Foi preciso que Albuquerque desse o exemplo e decidisse
viajar ele próprio na velha nau para dissipar as dúvidas. Pouco depois da
largada, e ainda no estreito de Malaca, o navio não resistiu ao mar agitado e
afundou-se, partindo-se em duas metades. O governador salvou-se, assim como
parte dos passageiros que com ele regressavam à Índia, mas a carga perdeu-se na
sua quase totalidade. Assim nasceu a lenda do tesouro da Flor de
la Mar. Quem for hoje a Malaca pode ver uma réplica do navio, no museu
histórico local». In Paulo Jorge Sousa Pinto, Os Portugueses Descobriram a Austrália? Existe
um tesouro da Flor de la Mar?, Mitos de Ontem e de Hoje, A Esfera dos Livros,
Lisboa, 2013, ISBN 978-989-626-498-7.
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