«(…) Não havia nada de hostil na
crítica, apenas a intenção de um diálogo fraterno, que nunca perdia de vista a
coragem e o valor dos que arriscaram suas próprias vidas para lutar contra o
estado de excepção. Daí ao problema do próprio empenho político de Cortázar era só um passo. Não é tarefa
fácil transferir a imaginação, o desejo, o jogo, o erotismo, a liberdade
criadora, os movimentos abertos da vida aos processos revolucionários reais,
com suas exigências políticas, demandas pragmáticas e rigores de enquadramento.
É com certa melancolia que se percebe, e Cortázar
assim o percebeu, revoluções que começam abertas à invenção, à mudança radical
dos valores e da vida, para mais adiante se fecharem, tornando-se rígidas e
dogmáticas. Publicado Libro de Manuel, as críticas de facto vieram,
várias vezes muito duras, algumas de uma injustiça flagrante. E vieram de dois
ângulos muito bem definidos. Numa ponta, os admiradores de Cortázar como grande escritor ligado ao fantástico, á construção da
estranheza a partir da vida quotidiana, linha de força que teria sido
desperdiçada na intenção de narrar directamente a história na forma extrema de
um estado de excepção. Na outra, críticos muito politizados, que consideraram Libro
de Manuel um lamentável equívoco, até certo ponto um exercício fútil e
superficial, incapaz de dar conta da complexidade do processo em curso na
Argentina. É como se fossem, essas duas linhas fortes, inconciliáveis,
sobretudo no tratamento de uma ditadura militar em curso. O que criaria um
problema quase insolúvel na própria narrativa, tentando combinar princípios de
composição incompatíveis, como que se desautorizando mutuamente. Como era de se
esperar, da ala mais extrema da esquerda vieram críticas que associavam Cortázar à indústria da cultura, um
escritor oportunista escrevendo de olho nas demandas do mercado. Injusta e
estreita, essa visão crítica pode muito bem ser deixada de lado. Mas permanece,
para um estudo mais cuidadoso e detido, o problema crítico acima indicado: a
composição da narrativa combinando princípios talvez incompatíveis, com isso
desequilibrando e enfraquecendo Libro de Manuel. A ressalva fica por
conta de uma dúvida fundada: os contos
são mais precisos e bem logrados, mas uma análise detida do romance poderia
trazer à tona não apenas defeitos, mas qualidades. Fica para outra
ocasião precisar essas diferenças.
Logo na abertura do livro, Cortázar mostra como se dá conta do problema,
nos seguintes termos: Por razones
obvias habré sido el primero en descubrir que este libro no solamente no parece
lo que quiere ser sino que con frecuencia parece lo que no quiere, y así los
propugnadores de la realidad en la literatura lo van a encontrar más bien
fantástico mientras que los encaramados en la literatura de ficción deplorarán
su deliberado contubernio con la historia de nuestros dias...
(Cortázar, 1973). O destinatário do livro é um bebé, Manuel, para quem um grupo
de militantes latino-americanos, exilados em Paris, monta uma espécie de álbum
para o futuro, onde se pode ler, desde logo, a esperança de um vir a ser, de um
mundo diferente, deixando no passado a violência e o medo, a injustiça e a
barbárie como vectores da vida social. Vale lembrar que Libro de Manuel
tem a ver com o gosto de Cortázar pelos
álbuns, pelos livros-almanaque, que combinam e misturam materiais os mais
diversos, como ainda se pode ler nos volumes de Último round e La vuelta
al dia en ochenta mundos, publicados uns poucos anos antes, em 1967 e
1969. Fiel a si mesmo e a seus empenhos, Cortázar tenta fazer a ponte
entre as duas linhas de força de sua vida e de sua trajectória como escritor.
De um lado, a herança da revolta romântica, que remonta a Rimbaud e à divisa il faut changer la vie. De outro,
a herança revolucionária, cuja referência é Marx e a necessidade de
mudar o mundo. Sem forçar a nota, Cortázar por certo pende muito mais para o
anticapitalismo libertário, de fundo romântico, que para os rigores objectivos
da organização política, dos partidos, no limite a própria luta armada. Mas daí
a supor e afirmar, como fizeram alguns críticos, que Cortázar nessa matéria foi
apenas manipulado, que era não mais que um ingénuo no campo das disputas
políticas, vai um exagero que não faz justiça à inteligência, aos propósitos e
aos empenhos do escritor argentino. Na esfera da representação
literária, juntar as duas águas, a realista e a fantástica, a que trata de modo
directo da história e a que constrói a sua estranheza a partir do quotidiano,
era de facto uma tarefa difícil». In André Bueno, Alguns contos de Cortázar.
Literatura e autoritarismo, Espaço urbano e Experiências de desolação e
violência, revista nº 19, 2012, ISSN 1679-849X.
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