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Anatole France, nos seus dois volumes, obra de arte e de inteligência, não vai
tão longe. Não tenta deixar de reconhecer-lhe as visões e as vozes. Aluno da École des Chartes, não ousa negar
a evidência, perante a vasta documentação de que dispõe. A sua obra é uma
reconstituição fiel da época. Pinta a fisionomia das cidades, das paisagens e
dos homens do tempo com mão de mestre, com uma habilidade, uma finura de toque,
que lembram Renan. Entretanto, a leitura dos seus escritos deixa-nos frios e
desapontados. As opiniões que emite são às vezes falsas, por efeito do espírito
de partido, e, coisa mais grave, sente-se, desfolhando-lhe as páginas, uma
ironia subtil e penetrante, que já não é história. Na verdade, o juiz imparcial
deve dar testemunho de que Joana,
exaltada pelos católicos, é denegrida pelos livres pensadores, mais por espírito
de contradição e de oposição aos primeiros do que por ódio. A heroína,
disputada por uns e outros, torna-se assim uma espécie de joguete nas mãos dos
partidos. Há excessos nas apreciações de ambos os lados e a verdade, como quase
sempre, é equidistante dos extremos.
O
ponto capital da questão é a existência de forças ocultas que os materialistas
ignoram, de potências invisíveis, não sobrenaturais e miraculosas, como pretendem,
mas pertencentes a domínios da natureza, que ainda não exploraram. Daí, a
impossibilidade de compreenderem a obra de Joana
e os meios pelos quais lhe foi possível realizá-la. Não souberam medir a
enormidade dos obstáculos que se deparavam diante da heroína. Pobre menina de
dezoito anos, filha de humildes camponeses, sem instrução, não sabendo o A, B,
C, diz a crónica. Tem contra si a própria família, a opinião pública, toda a
gente! Que teria feito sem a
inspiração e sem a visão do Além, que a sustentavam? Imaginai essa
camponesa na presença dos nobres do reino, das grandes damas e dos prelados. Na
corte, nos acampamentos, por toda a parte, simples vilã, vinda do fundo dos
campos, ignorante das coisas da guerra, com o seu sotaque defeituoso, cumpre-lhe
enfrentar os preconceitos de hierarquia e de nascimento, o orgulho de casta;
depois, mais tarde, os motejos, as brutalidades dos guerreiros, habituados a
desprezar a mulher, não podendo admitir que uma donzela os comandasse e dirigisse.
Juntai a isso a desconfiança dos homens da Igreja, que, nessa época, viam em tudo
o que é anormal a intervenção do demónio; esses não lhe perdoaram actuar sem a
permissão deles, fazendo jus à autoridade que se arrogavam, e aí estará, para
ela, a causa principal da sua perda.
Imaginai
a curiosidade malsã de todos e, particularmente, dos soldados, no meio dos
quais, virgem sem mácula, tem de viver suportando constantemente as fadigas, as
penosas cavalgadas, o peso esmagador de uma armadura de ferro, dormindo no chão,
sob a tenda, pelas longas noites do acampamento, presa dos acabrunhadores
cuidados e preocupações de tão árdua tarefa. Todavia, durante a sua curta carreira,
vencerá todos os obstáculos e, de um povo dividido, fragmentado em mil facções,
desmoralizado, extenuado pela fome, pela peste e por todas as misérias de uma guerra
que dura há perto de cem anos, fará uma nação vitoriosa. Eis aí o que
escritores de talento, mas cegos, flagelados por uma cegueira psíquica e moral,
que é a pior das enfermidades intelectuais, procuram explicar por meios
puramente materiais e terrenos. Pobres explicações, pobres argúcias
claudicantes, que não resistem ao exame dos factos! Pobres almas míopes, almas
de trevas, que as luzes do Além deslumbram e atordoam! É a elas que se aplica
esta sentença de um pensador: o que sabem não passa de um nada e, com o que
ignoram, se criaria o Universo!
Coisa
deplorável: certos críticos da actualidade como que experimentam a necessidade
de rebaixar, de diminuir, de anular com frenesim tudo que é grande, tudo que
paira acima da sua incapacidade moral. Onde quer que brilhe um luzeiro, ou se acenda
uma chama, havereis de vê-los a correr e a derramar um dilúvio de água sobre o
foco luminoso. Ah!, como Joana, na
ignorância das coisas humanas, mas com a sua profunda visão psíquica, lhes dá
uma lição magnífica por estas palavras que dirigia aos examinadores de Poitiers
e que tão bem se enquadram nos cépticos modernos, nos pretensiosos espíritos
superiores do nosso tempo: Leio num
livro em que há mais coisas do que nos vossos!» In Léon Denis, Joana D’Arc, A
Celta, A missão histórica da heroína, as suas visões e espiritualidade,
tradução de Eduardo Amarante, projecto Apeiron, Zéfiro, 2010, ISBN
978-989-677-023-5.
Cortesia
de Zéfiro/JDACT