domingo, 15 de fevereiro de 2015

Quando se descobriu que a China e o Japão eram o Cataio e o Cipango de Marco Polo? O arranque dos Descobrimentos. Paulo Jorge Pinto. «… para a história da região, mas cujos tratados de Geografia constituem uma amálgama confusa a que alguém chamou um dia de pesadelo cartográfico»

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«Um dos aspectos mais interessantes da época dos Descobrimentos, e que, só por si, quase bastaria para derrubar certos mitos e teses, desde a Escola de Sagres até aos alegados conhecimentos trazidos da Europa pelo infante Pedro, foi o modo como Portugal, que sempre estivera desactualizado no que dizia respeito à produção europeia sobre o conhecimento do mundo, introduziu novas informações que tornaram obsoletas as noções clássicas e tradicionais da geografia ocidental. Um problema de sincronia; quem quer que tenha alguma vez trabalhado em edição de vídeo num computador perceberá do que falo: quando o processamento da imagem se atrasa em relação ao som, o resultado torna-se incompreensível e obriga a começar do início.
Algo de idêntico se passou ao longo do século XVI: duas dimensões distintas, uma livresca e erudita, outra prática e ligada à navegação, que obrigou a Europa a um esforço de actualização e sincronização. Durante algum tempo foi ainda possível ajustar as duas fontes informativas, mas a certa altura já não havia forma de alinhar os novos dados com os antigos. Alguns autores, desejosos de mostrar erudição e conhecimento dos clássicos, tentaram-no, com resultados desconcertantes; caso exemplar é o do luso-malaio Manuel Godinho Erédia, uma excelente fonte para Malaca e para a história da região, mas cujos tratados de Geografia constituem uma amálgama confusa a que alguém chamou um dia de pesadelo cartográfico.
O caso da identificação da Taprobana, por surgir mencionada logo no início d’Os Lusíadas é o mais conhecido. O que era? A ilha de Ceilão (actual Sri Lanka), decerto. Mas, segundo alguns geógrafos italianos, era Samatra, por relutância em contradizer Ptolomeu. Outros incluíam ainda informações provenientes do Livro de Marco Polo famoso viajante veneziano que percorrera a Ásia e cujo relato se tornou célebre por toda a Europa. Adiante-se, porém, que são escassos os vestígios de Ptolomeu e de Marco Polo na cartografia portuguesa, cuja fonte era mais segura e fiável: o manancial informativo proveniente das viagens de exploração.
Em boa parte dos casos, bastou corrigir nomes, acertar pormenores, substituir nomenclaturas, algo que foi feito muito lentamente, à medida que o prestígio da tradição ptolemaica decaía e as informações de Marco Polo eram revistas. Porém, ao mesmo tempo que a Europa recebia com avidez as informações portuguesas sobre o Oriente, algumas obras antigas conheciam um interesse renovado; o caso mais curioso é o do livro de John Mandeville, uma das fontes principais de Cristóvão Colombo, relembre-se, cheio de histórias fabulosas e criaturas fantásticas, que continuou a ser reeditado e traduzido Europa fora, quando já eram claras as suas falsidades e pouca fiabilidade. Nada que nos deva surpreender, afinal: também nos nossos dias, As Cartas da Maya tem uma audiência várias vezes superior ao Com Ciência.
Todavia, outras situações foram um pouco mais complexas. Que era feito do riquíssimo Cataio, que Marco Polo visitara e que os Europeus nunca haviam localizado? E o Cipango, cujas descrições de casas com telhados de ouro haviam inflamado a imaginação de Cristóvão Colombo e acendido o seu projecto de navegação atlântica? Não foram simplesmente riscados dos manuais. Pelo contrário, subsistiram durante muito tempo. Cataio é a forma portuguesa do italiano Catai, corruptela do Khitan ou Khitai (Qidan em pinyin mandarim), um povo nómada da Mongólia que acabou por ser absorvido pela China mongol. No Livro de Marco Polo, designa, por extensão, a China que conheceu.
Esta dimensão continental e medieval da China interior era completamente desconhecida dos Portugueses e nunca suscitou grande interesse por cá. O que os Portugueses contactaram e conheciam era a China marítimaq e costeira, acessível a partir de Malaca, do Guangdong e do Fujian. Atribui-se geralmente ao jesuíta Mateo Ricci (1522-1610), figura de proa da missão em Pequim, a equivalência entre o Cataio de Marco Polo e a China real, a que o próprio acedera a partir de Macau». In Paulo Jorge Sousa Pinto, Os Portugueses Descobriram a Austrália? Quando se descobriu que a China e o Japão eram o Cataio e o Cipango de Marco Polo?, Mitos de Ontem e de Hoje, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-626-498-7.

Cortesia de ELivros/JDACT