A
formação de Portugal na historiografia contemporânea
«No Portugal contemporâneo, a
reflexão sobre a identidade nacional não se aprofundou como noutras nações
europeias. Mas nunca deixou de estar presente na historiografia e na literatura
e desenvolveu-se em múltiplas direcções após a queda do Império, em 1974-75.
Diversos autores têm sublinhado a função social da história na formação da
consciência nacional. Entre as elites intelectuais, os historiadores ocupam um
lugar destacado na fixação de uma memória social, uma memória escrita, não raro
erudita, acessível a uma pequena parcela da comunidade em que se inserem. Essa
memória da nação teve as suas limitações, durante muito tempo permaneceu
manuscrita, quando não oral; frequentemente esqueceu as diversidades étnicas e
culturais bem como as assimetrias regionais, para olhar o território nacional
como um todo indiferenciado. E até ao século XIX, deixou-se entrosar por
diversos mitos. Mas não exprimem esses mitos, também eles, um determinado sentido de identidade? Seja como
for, a memória da nação contribuiu para legitimar a independência do Estado
português e a sua permanência histórica, bem como para forjar a coesão
nacional. O caso português revela particularidades em relação a outros
Estados-nação europeus que importa considerar: escasso peso das minorias
étnicas, religiosas e linguísticas no todo nacional, de um modo geral nele
integradas sem problemas; escassez de revoltas e rebeliões regionais e locais.
Em tal contexto de relativa homogeneidade, de períodos de relativa estabilidade
política e social (1851-1868; 1871-1890; 1932-1958) e de difusão
de ideários nacionalistas, não surpreende que a história tenha sobretudo
vincado um sentido da unidade nacional. Em diversos momentos estiveram em jogo
desafios internos e externos, que podiam pôr em causa a existência do Estado
independente: o défice das finanças públicas; o desafio iberista, tão vivo nos
decénios de 1850-70 ou logo após a instauração da Iª República em 1910, e a questão colonial, a ameaça que outras potências europeias
com maiores recursos significavam em África. Nestas circunstâncias,
compreende-se que um pequeno Estado europeu periférico e marginal como o
português tenha, em diversos momentos, incentivado os estudos históricos e a
publicação de fontes relevantes para o conhecimento do seu passado. E que a
historiografia portuguesa tenha sido frequentemente instrumentalizada pelos
nacionalismos e pelas ideologias difundidas pelo Estado ou por correntes
políticas organizadas. A par de outras temáticas como a Cruzada, os
Descobrimentos e a expansão ultramarina, a decadência e o atraso relativamente
a outras nações europeias, a definição do herói nacional ou as relações com
Castela, o problema da independência de Portugal e a sua permanência histórica
constituíram um dos temas-chave da historiografia portuguesa, sobretudo a
partir da revolução liberal de meados do século XIX. Tornou-se, de resto, numa
das referências fundamentais na legitimação histórica do Estado português. O tema
da formação
de Portugal foi tratado em múltiplas perspectivas, tendo em conta, não
raro, a questão das origens étnicas dos Portugueses, a autonomização do Estado
no século XII, o território, a construção da nação e a sua continuidade no
tempo. A frequente indiferenciação entre os conceitos de pátria, Estado e
nação, que se observa na historiografia oitocentista (com raras excepções
como as de Herculano e Oliveira Martins), contribuiu para a mescla daquelas
questões que hoje são consideradas de um modo distinto.
Das
teses providencialistas à teoria política de Herculano
Desde os finais do século XVIII,
o racionalismo iluminista e a afirmação de uma historiografia de exigência
documental e científica, sobretudo ligada à Academia Real das Ciências,
alimentaram uma corrente crítica em relação às fábulas acerca das origens de Portugal: Túbal (neto de Noé,
suposto fundador de Setúbal e do Reino de Portugal) e a sua descendência
mítica, o milagre de Ourique e as alegadas Cortes de Lamego. A crença
no progresso, a confiança na razão e o sentido crítico perante a teologia
contribuía para minar a credibilidade dessas tradições tão difundidas mas, na
verdade, nunca fundamentadas em evidências históricas. A instauração do regime
liberal pela força das armas, depois legitimado por eleições e pela adopção dos
textos constitucionais, e as novas exigências culturais de um Estado-nação em
construção, que intentava formar cidadãos instruídos e não já súbditos fiéis ao
monarca absoluto, tornavam arcaicos alguns desses mitos das origens (Túbal
e o milagre de Ourique). Mas até meados de Oitocentos, era ainda muito
comum a teoria providencialista acerca da batalha de Ourique, como
momento-chave na formação do Estado português: para além dos legitimistas, partidários
do Antigo Regime político, o poeta António Feliciano Castilho ainda a
difundia. Outros autores esqueciam a tradição do milagre de Ourique mas
continuavam a ver na batalha o facto decisivo na fundação da monarquia (caso
de Coelho Rocha ou de Ferdinand Denis). Esta sobrevalorização do
acontecimento, baseada, por vezes na teoria contratualista da origem popular do
poder real, associava-se também à sobrevalorização do papel histórico de Afonso
Henriques, herói fundador por excelência. Fundamentava-se assim a
separação do Estado, quando não da Nação (frequentemente confundida com o
Estado), no princípio dinástico. Mas num tempo de céleres transformações
sociais e extraordinárias conquistas científicas como foi o século XIX,
depressa esta tese se tornou insuficiente para explicar a complexa realidade
dos Estados-nação». In Sérgio Campos Matos, Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa, História e Identidade Nacional, A formação de
Portugal na historiografia contemporânea, Lusotopie, IV Jornadas, Porto, 2002.
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