segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

O Doido e a Morte. Teixeira de Pascoaes. «Amor não se conjuga no passado, ou se ama para sempre ou nunca se amou verdadeiramente. O amor é uma amostra mortal da imortalidade. O sonho jovem do amor é muito velho»

Cortesia de wikipedia

A Philéas Lebesgue
«Era uma fria noite de Natal.
Já no zénite a lua derramava
a sua palidez misteriosa,
transfigurando as cousas que se mostram
na sombra, com seus gestos de Fantasma
e atitudes de estranha Aparição…

Nos solitários longes montanhosos
a névoa e o luar, quiméricos, deliam
a moribunda face da Paisagem…
E esta, por um milagre e encantamento,
se espiritualizava, convertendo-se
em Figuras de sonho, aéreos Corpos…
E eram perfis de Fadas espreitando,
asas de Serafins que, no seu voo,
pareciam levar alguma Virgem…

A aragem fria e fina arrepiava
as árvores e os nocturnos viandantes,
e retocava o brilho das estrelas.
Os pinheiros gemiam surdamente;
e na face das pedras espelhada,
o luar abria num sorriso triste.

Vultos negros, opacos de penedos
erguiam-se sonâmbulos e mudos
no crepúsculo, e olhavam como Esfinges…
O Silêncio reinava: era o Senhor
da noite e da paisagem, e o seu Reino
para além das estrelas se estendia…

Por um longo caminho esbranquiçado,
entre pinhais sombrios e confusos,
a Morte cavalgava a largo trote.
As patas espectrais do seu Cavalo
ouviam-se bater na terra dura
e sonora que o gelo trespassava.

E aquele ruído seco, difundindo-se
na merencória lividez do céu,
o ensombrava de lágrimas e medos…
E figurava o ar a feia Morte,
envolta numa túnica de sombra,
segurando na mão, só feita de ossos,
a Foice, em cuja lâmina luzente
se espelhava o luar…
Seus fundos olhos
encovados, volvidos para dentro,
eram poços de treva, onde os morcegos,
as estrelas, as árvores, as nuvens,
iam ver sua imagem reflectida.

Os pássaros nocturnos, celebrando
a Noite nos seus cantos agoureiros,
esvoaçavam de encontro àquelas órbitas
vazias, descarnadas: dois buracos
apagados de luz, secos de lágrimas,
sobre um aberto riso empedernido.

E a Morte cavalgava a largo trote,
por um ermo caminho esbranquiçado,
no arrepio da Noite e do Mistério…

O vento fino e frio magoava
as árvores, fazendo flutuar
a túnica da Morte que envolvia
seu corpo de esqueleto e as largas ancas
do seu Cavalo, cuja sombra inquieta
e nervosa manchava a estrada clara.

E atravessava agora um indeciso
planalto, em formas vagas, emergindo
da cerração noturna dos pinhais.
[…]
Poema de Teixeira de Pascoaes, in ‘O Doido e a Morte’

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