«Fernando
é o outro lado da História. É a criança que cresceu sem mãe, educado por uma
aia, enquanto o pai vivia o mais célebre romance do imaginário nacional. É o
filho de Dona Constança, a mulher que morreu pouco depois de o dar à luz e já
nem o pôde amamentar. É o jovem infante que também perdeu cedo o irmão mais
velho, Luís, e que foi assistindo a tudo isto debaixo da protecção que
lhe conseguiam dar os avós, Afonso IV e dona Beatriz, reis de Portugal. E,
naquele tempo, apenas o rodapé ao caso do pai, Pedro, e da amante, dona
Inês. O espectador que não sabemos o que sentiu enquanto via o pai
desencantar-se da mãe, apaixonar-se por um a aia desta, viver com ela uma relação
proibida depois de enviuvar e dar-lhe com dona Inês meios-irmãos. Todavia, este
foi Fernando,
futuro rei, nos seus primeiros anos de vida, o pequeno príncipe que assistiu à
espiral de loucura que tomara conta da família: o avô que manda matar a mulher
do pai, um pai que ensandece, manda matar os assassinos de dona Inês e
desenterra-a, coroando-lhe a cabeça morta e ordenando que o povo viesse beijar
a mão da rainha-cadáver. O excesso romântico de tudo isto. E, no entanto, a verdade
é que Pedro, o pai deste rapaz a crescer belo e garboso, seria um rei
bem mais equilibrado e menos dramático do que aqueles episódios faziam prever.
Uns, chamá-lo-iam para sempre o Cruel,
mas outros o Justo. Equilibrou as
contas do reino e até gostava de se apear da carruagem real para ir dançar com
o povo, no meio dos arraiais.
No
entanto, a História é algo bem diferente do que a memória colectiva depois faz
dela. A passagem do tempo apenas deixou visível o que estava à superfície: o
rei Pedro como eterno apaixonado de uma mulher que amava e fora
cruelmente assassinada, e nada mais. Nem uma referência à relação que manteria
com esse filho, que sabia que lhe ia suceder, ou àquela que esse filho teria
com os meios-irmãos, filhos do pai e de dona Inês, e que também hão-de desempenhar
um papel na história das décadas seguintes. E quase nada sobre todos os
envolvimentos amorosos que Pedro I levou depois de dona Inês de Casto, num
trajecto bem diferente de uma hipotética viuvez pudica e melancólica, e que
pode ter incluído dona Beatriz Dias, o escudeiro Afonso Madeira, que um dia
teria mandado castrar por lhe ter sido infiel com uma dama da corte, e, acima
de tudo, dona Teresa Lourenço, a dama galega da qual nada se sabe (não
é sequer certo que se trate de Teresa Gil Lourenço ou Teresa Lourenço de Almeida),
a não ser que lhe daria um filho bastardo que, anos mais tarde, haveria de
salvar a independência de Portugal. Lá chegaremos. Por agora, falamos de Fernando,
o tal rapaz que se punha príncipe garboso e belo e que ficaria oficialmente
cognominado de o Formoso e,
oficiosamente, de o Inconstante ou o Inconsciente, dando razão àquele velho
dito de que beleza não põe mesa
logo a partir do dia em que sucedesse no trono ao pai, ano da graça de 1367.
Fernando tinha 22 anos,
era belo, valente e senhor dum reino que andava de cofres cheios. O problema,
para ele, não começou dentro de portas, mas do lado de 1á da fronteira. Castela
estava em guerra depois da morte do rei Afonso XI. O trono era violentamente
disputado entre Pedro, também cognominado o
Cruel, único filho legítimo do soberano falecido, e o seu irmão bastardo,
Henrique de Trastâmara. Fernando começou de forma prudente,
mantendo-se neutral, mas o caso mudou de figura quando a contenda atingiu o extremo
da infâmia: Henrique mata o irmão, saltando para o trono de forma sanguinária
e ilegítima. Temendo pela vida, muitos dos fidalgos que tinham combatido ao
lado do falecido Pedro fogem para Portugal. Vinham em busca de refúgio e de
algo mais: um novo candidato que representasse o seu partido e destronasse o
rei assassino. Fernando ainda bisneto de Sancho IV era também um jovem
manipulável e ambicioso, e assim não custou muito a convencer a dar guerra a
Henrique e a reclamar para si a coroa castelhana. Começava assim a primeira das guerras fernandinas, todas com
Castela, todas dispendiosas, absurdas e inúteis. Deslumbrado com a
visão de si mesmo como primeiro rei de Portugal e Castela, isto é, de quase
toda a Península Ibérica, Fernando daria início à vertiginosa
sangria dos cofres nacionais que o pai, Pedro, numa rara ocasião em toda
a História nacional, tão bem equilibrados deixara». In Alexandre Borges, Histórias
Secretas de Reis Portugueses, Casa das Estrelas, 2012, ISBN 978-972-46-2131-9.
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