quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Os Museus e o Património Cultural Imaterial. Ana Carvalho. «… objecto uma reflexão em torno da salvaguarda do PCI. Deste projecto resultaram mais perguntas do que respostas, às quais importava dar um sentido. Face à inexistência de um debate profundo sobre esta matéria em Portugal…»

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Estratégias para o desenvolvimento de boas práticas
«A salvaguarda do Património Cultural Imaterial (doravante PCI) é um tema que tem merecido particular destaque nos últimos anos nos fóruns internacionais, especialmente os promovidos pela UNESCO, motivando o interesse crescente de profissionais de várias áreas para a sua investigação e análise. Mas não só, o ICOMOS, o ICOM e a WIPO são também algumas das organizações envolvidas no debate e que se prolonga nos meios universitários. De certa forma, este era um campo tradicionalmente restrito aos antropólogos e sociólogos, mas pouco a pouco o debate expandiu-se com a participação de museólogos, historiadores, arquitectos, urbanistas, entre outros. Assistimos nas últimas décadas a um alargamento significativo do conceito de património cultural. A ideia de património estritamente focada nos monumentos e sítios foi sendo abandonada, passando por um processo evolutivo que introduz novas dimensões ou novos patrimónios. Por outro lado, ganhou expressividade uma perspectiva antropológica da cultura, mais interessada nos processos, em detrimento de uma visão centrada apenas nos objectos. Daqui resulta uma definição de património que se constitui por um conjunto de expressões, interligadas e complexas, apelando à diversidade cultural, da qual o PCI é um dos elementos essenciais. Vários foram os termos utilizados ao longo do tempo, alguns até com carácter pejorativo, mas a designação PCI ganhou recentemente mais expressividade, sobretudo na esfera política, como conceito operativo, introduzido pela UNESCO.
O PCI compreende um conjunto diverso de expressões e tradições que as comunidades e os grupos vão transmitindo de geração em geração, recriando-as ao sabor dos tempos. Trata-se de um património vivo que se vai expressando através da música, da dança, da oralidade, do teatro e dos objectos, fazendo parte de uma complexa teia de valores, sistemas do conhecimento e saberes que estão associados à vida humana. Considerado um pilar fundamental da diversidade cultural, o PCI está na base da(s) identidade(s) das comunidades. No entanto, estes conhecimentos raramente são documentados e, na maior parte das vezes, correm o risco de se perder indelevelmente, tendo em conta que se encontram muito condicionados pelos efeitos homogeneizadores da globalização. Este é um património que importa salvaguardar de modo a que continue a ser praticado e transmitido no seio das comunidades onde se insere. A par das preocupações vindas da antropologia em resgatar os vestígios de uma sociedade cujas práticas sociais e culturais tradicionais estão em vias de desaparecer e de um contexto político preocupado com os efeitos da globalização, surgem algumas movimentações relativamente à protecção deste património. A UNESCO tem preconizado muitas das iniciativas que colocaram o tema do PCI na ordem do dia, alimentando a discussão em torno da sua salvaguarda, dando-lhe assim amplo reconhecimento internacional. Exemplo disso é o culminar de um longo caminho percorrido em prol da protecção deste património, primeiro com a Recomendação para a Salvaguarda da Cultura Tradicional e do Folclore, em 1989, e, mais recentemente, com a adopção da Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial em 2003 (doravante Convenção de 2003). Esta Convenção vem reconhecer a importância do PCI e completar, de certo modo, um espaço deixado pela Convenção para a Protecção do Património Mundial, Cultural e Natural de 1972 (doravante Convenção de 1972), um instrumento jurídico mais direccionado para o património material.
Apesar do seu relativo sucesso, se assim se pode dizer, a Convenção de 2003 tem sido objecto de várias críticas. Muitos debates têm surgido em torno da sua implementação e dos princípios que lhe estão adjacentes. Mas a verdade é que a ratificação da Convenção pelos Estados-Partes, que actualmente já ultrapassa a centena, obriga a uma reflexão que cada país terá que necessariamente fazer em torno da formulação de políticas culturais de valorização do PCI. Afinal, essa é uma consequência directa da aceitação deste documento normativo. Assim, tal como a Convenção de 1972 viria a mudar indiscutivelmente o panorama político de salvaguarda do património cultural, é comummente aceite que o mesmo se passará com esta nova Convenção. A motivação para desenvolver este tema nasce das interrogações que surgiram no decorrer do trabalho de campo realizado no contexto de um projecto de dois anos que teve como objecto uma reflexão em torno da salvaguarda do PCI. Deste projecto resultaram mais perguntas do que respostas, às quais importava dar um sentido. Face à inexistência de um debate profundo sobre esta matéria em Portugal e perante os desenvolvimentos introduzidos pela UNESCO a propósito da Convenção de 2003 e respectiva conjuntura actual, considerou-se oportuno aprofundar este tema e interligá-lo com os museus. No que respeita à museologia, é conhecido o apoio do ICOM à Convenção de 2003. Em documentos como a Carta de Shanghai (2002) ou a Declaração de Seoul (2004), o ICOM reconhece o papel dos museus na salvaguarda do PCI». In Ana Carvalho, Os Museus e o Património Cultural Imaterial, Estratégias para o desenvolvimento de boas práticas, Edições Colibri, CIDEHUS, Universidade de Évora, 2011, ISBN 978-9879-689-169-5.

Cortesia de EColibri/JDACT