«(…) O espiritual perdera todas as características primitivas. Apesar
de tudo, continuava a respeitar-se as isenções e privilégios, especialmente o
do foro. Havia em todas as ordens, além dos cavaleiros, clérigos-freires para o
culto divino, são estes que encontramos aqui reunidos especialmente. Deviam
estes viver conventualmente, sob a jurisdição do prior-mor, porém nem todos têm
grande queda para recatos. Andavam, por assim dizer, quase sempre na
giraldinha, em muito boa vida airada. El-Rei nomeara há pouco priores-mores
para o Mosteiro de Santa Cruz. A Ordem de S. Francisco andava partida a meio,
com conventuais para um lado e claustrais para o outro, que Leão X reconhecera,
tornando definitiva a separação entre conventuais observantes e reunindo as
várias congregações formadas por estes últimos, sob o título de Frades
Menores da regular observância. Gente muito conflituosa que não consegue
viver em boa harmonia. Os mais estranhos serão esses Capuchos castelhanos
que se estabeleceram na antiga Ermida de Nossa Senhora da Piedade. Como não traziam pecados visíveis, vai de
andar à sarrafada entre eles...
Os mosteiros beneditinos, já muito ricos e prósperos, andam cada vez
mais decadentes, e S. Bento não parece ser muito popular. Os abades
comendatórios é que mandam por lá, mas ordinariamente tratam mais de si que do
espiritual e temporal em seus mosteiros. Os Cistercienses, ou de S. Bernardo,
tratam-se com mais economia, gozando mercês e privilégios, têm rendas e figuras
poderosas, são bem abastados por sinal. Os de S. Domingos têm também o fel
ao pé da boca. São frades pregadores que pregam bem mas não entre si... Ali,
na Nossa Senhora do Vencimento do monte do Carmo, vivem os Carmelitas, que
trajam a uso o hábito de donato como foi imposto ao Condestável. São mais discretos.
Gente de saber e de poder, esses sim, são os de Jerónimo, que parecem
vir desses discípulos de S. Tomás de Sena, o italiano. É a ordem de frei Tomás,
.a quem o papa Gregório XI concedeu a regra de Santo Agostinho, modificada com
algumas prescrições de S. Jerónimo. Muitos reis devem à Ordem muitos favores, e
El--Rei não é excepção, andando a doar-lhes um mosteiro que fica pegado ao
grande templo que mandou erguer no lugar da antiga Igreja de Santa Maria
e onde El-Rei quer permanecer depois de finado (quer lá ficar sozinho, sepulto na capela-mor do mosteiro, fazendo
da obra um lugar erguido à sua memória e aos grandes feitos que em seu nome o
reino foi gerando). El-Rei, por grande capricho, quer mais, pois pediu
ao papa autorização para fundar doze mosteiros para a Ordem, um deles numas ilhotas
insalubres a que chamam Berlengas e onde
os Jerónimos irão viver, pela certa, no meio de guano e gaivotas loucas. A
coisa, claro, é muito discutida, a começar pela grande renovação do Convento de
Cristo, que anda a desviar mão-de-obra e fundos do que se destinava ao tal grande
Mosteiro de Santa Maria. O papa foi logo de concordar com a obra inteira
deste grande mosteiro, pois tudo o que favoreça o aumento do culto divino, a
salvação das almas e o florescimento da religião é sempre bem-vindo nestes
tempos em que a fé vai escasseando. Mas o papa não foi de modas. Obrigou
contrapartidas. Que se rezasse uma missa quotidiana por alma do Infante
descobridor; que se atendesse de confissão os marinheiros e peregrinos em todos
os casos não reservados à Santa Sé; que se lhes ministrasse a eucaristia, sem
prejuízo, contudo, das igrejas paroquiais circunvizinhas... Lá se assinou bula,
concedendo todos os privilégios, indultos, imunidades, liberdades, graças e concessões
outorgadas ou a outorgar, coisas que são assim de grande comodidade». In
Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000, ISBN
972-42-2392-2.
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