quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

As Obras do Diabinho da Mão Furada. António José Silva. «Teria sido vendida sob a forma de folhetins? Teria sido narrada em salões de convívio da nobreza ou da burguesia, como era costume? Ou em botequins (bares da época) a ouvintes dispostos a ouvir? Não é possível sabê-lo»

jdact e wikipedia

«Escrita durante os inícios do século XVIII (1700) esta novela tem a particularidade de ser considerada a primeira novela de terror portuguesa, apesar de conter também muitos elementos cómicos. Sendo de autoria anónima, a obra tem levantado uma ampla discussão em torno da identidade do seu autor a partir do momento em que o seu anuscrito (ou uma cópia do original) foi descoberto no século seguinte. Mesmo quando se levantou a presunção de ter sido uma obra da autoria de António José da Silva, mais conhecido pelo cognome o Judeu e que viria a morrer nas fogueiras da inquisição, esta não foi consensual. No entanto acabou por publicada em 1861, pela primeira vez, com o título e o subtítulo de Obras do Diabinho da Mão Furada, uma novela Diabólica de António José da Silva, o que ajudou à sua divulgação pois na época a sociedade fazia uma reflexão sobre as injustiças da inquisição [maldita (que se extinguiu, oficialmente só em 1821)] e António José da Silva era visto como um dos mais notórios mártires desse tempo. Fosse ou não o autor, o seu nome acabou por ficar associado à obra. Não é possível dizer em que termos a obra foi divulgada na época que foi escrita, se é que o chegou realmente a ser. Teria sido vendida sob a forma de folhetins? Teria sido narrada em salões de convívio da nobreza ou da burguesia, como era costume? Ou em botequins (bares da época) a ouvintes dispostos a ouvir? Não é possível sabê-lo. Mas a obra certamente foi escrita com o intuito de aterrorizar e de divertir quem a lesse ou ouvisse e faz um retrato perfeito e mordaz da mentalidade e dos costumes da época em que foi escrita. É uma aventura que descreve uma caminhada do Alentejo a Lisboa, cheia de peripécia e com elementos que claramente invocam a obra de Dante Alighieri, A Divina Comédia que tanto servem para aterrorizar, moralizar (pelo medo) e para divertir através do sarcasmo e da paródia.
Será pertinente falar também do demónio que a obra invoca: O Diabinho da Mão Furada. O nome original deste personagem, e pelo qual ainda é conhecido nalguns locais do Norte de Portugal, é Duende da Mão Furada, uma criatura folclórica galaico-portuguesa que remota ao tempo dos celtiberos. É um duende caseiro e que tanto concede favores e benefícios como engana e prega partidas. Tem na cabeça um barrete encarnado, faz desaparecer peças de roupa ou outros objectos da casa e faz azedar a comida que acabou de ser feita; mas também é capaz de trazer a paz e a felicidade ao lar se o mantiverem satisfeito. Para isso basta deixarem-lhe migas de pão ensopadas em leite num prato, durante a noite, em qualquer canto da casa. Se está de muito mau humor entra nos quartos, durante a noite, através do buraco da fechadura das portas, põe-se à vontade em cima das pessoas e causa-lhes grandes pesadelos. Tem as mãos furadas porque são mãos cheias de enganos e não se pode confiar nele, mas que também o faz derrubar muitos dos objectos domésticos que por vezes tenta roubar. Durante os séculos XVII e XVIII, séculos de forte domínio católico que abarcou praticamente tudo ligado ao paganismo, o duende das mãos furadas assumiu a forma de um diabrete e passou a chamar-se de Diabinho da Mão Furada ou Fradinho da Mão Furada; um ser malévolo e ligado aos medos dos infernos mas que manteve a personalidade brincalhona e sempre disposto a pregar partidas. Para além de uma actualização ortográfica, a presente edição foi alvo de uma adaptação linguística corrente, nomeadamente, em passagens em que se verificou que linguagem usada no século XVIII dificultava, em grande escala, a leitura da obra». In Equipa Luso Livros.

«Retirou-se um soldado da milícia de Flandes, no tempo de Felipe II, chamado André Peralta, afligido e mal tratado da guerra, tão pobre como soldado e tão desgraçado como pobre. Depois de entrar neste Reino de Portugal, onde tinha nascido, caminhava para Lisboa, pátria comum de estrangeiros, madrasta dos naturais e protectora dos venturosos. Quando começou a anoitecer estava ele a uma légua de distância da cidade de Évora, num sítio aonde estavam umas casas abertas e desocupadas de gente. E vendo o soldado caminhante que a noite ameaçava com a escuridão medonha e que as nuvens sem descansar choviam dilúvios de água, resolveu passar a noite, como pudesse, nalguma casa mais reparada daqueles edifícios, contentando-se para seu sustento as limitadas provisões do seu alforge. Primeiro cortou com a espada alguns ramos de umas árvores e arbustos que estavam ali por perto, para acender uma fogueira com que se pudesse enxugar da chuva e o livrasse do frio, e só depois recolheu-se a uma das casas que julgou mais acomodada. Lá dentro, tirou do alforge fuzil e pederneira (também conhecida por sílex, é uma pedra que ao embater com uma peça de metal, o fuzil, produz uma faísca), que são os mais importantes apetrechos de quem caminha, e acendeu um fogo. À luz da claridade, varreu com uns ramos parte da casa em que se acomodou e depois de se enxugar ceou parte do pobre sustento que trazia.
Já tinha o Soldado, depois de cear, dormido um breve sono, e estaria passada a terça parte da noite, quando o acordou um grande barulho e estrondo que vindo das divisões vizinhas; e, aplicando ao lume alguns ramos já secos, para que com mais claridade pudesse melhor testemunhar o que aquilo era, ouviu que uma voz desentoada e medonha que lhe disse: Sai, atrevido soldado, desta casa, se não queres morrer nela soterrado e desfazendo-se sobre ti. A esta voz, viu o Soldado, no seu parecer, que as paredes da casa em que estava estremeciam, prognosticando a sua ruína, e que os fragmentos das antigas portas e janelas se quebravam. Mas nem por isso perdeu a compostura e fazendo das tripas coração, para não o matar primeiro o medo que o perigo, como muitas vezes acontece aos desalentados, respondeu à desentoada voz: Se és espírito transmigrado desta vida, e necessitas de alguma coisa dela, rogo-te, da parte de Deus, me digas quem és e o que pretendes, que ânimo tenho para te ouvir, e prometo-te que farei tudo o que necessitares para o teu remédio, ainda que por ser um pobre soldado me seja necessário mendigar para isso. Mas se és espírito maligno, digo-te que nada me faz temer as tuas ameaças. Aqui tenho a cruz da minha espada e as palavras me ensinou a santa fé católica que me livrarão de ti e dos teus poderes, pois não tens jurisdição para executares nada sem que a Divina Providência o permita. E se o facto de eu estar aqui, te chateia, pouco tempo terás esta moléstia, pois da noite já é passada a maior parte, e assim que aparecer a primeira luz da resplandecente aurora, irei logo, mas o rigor da escuridão e tempestade que está a fazer não me dão lugar a obedecer-te neste momento. Com isto me parece que se em ti há alguma luz de razão, podes-te dar por satisfeito e desculpar-me por me atrever a ser teu hóspede, pois se no campo havia de morrer esta noite posto à chuva e ao frio, pareceu-me lícito amparar-me ao abrigo da solidão desta casa, a que me recolhi. Uma vez que estás tão reticente em saíres, por julgares haver aqui agasalho, disse-lhe a voz, que se faça aqui o estado que oferece o campo.
E dizendo isto, num breve instante, destelhou-se o telhado da casa e ficou a chover dentro dela como na rua. O Soldado, vendo-se naquele aperto, não teve outro remédio senão meter-se a um canto da chaminé e, tomado de audácia para com o dono da casa, que até ao diabo se obriga o uso de lisonjas, disse-lhe: Senhor Barrabás, ou qualquer príncipe infernal, ou quem Vossa Diabrura seja, não é política de sujeitos grandes usarem tais rigores com os humildes. Perdoe-me, Vossa Diabrura, por ter violado a paz desta casa com a minha intrusão. Considerando que o medo e o frio faz unir o homem com o seu inimigo, e, como o frio desta noite era tão grande, obrigou-me a não ligar a preceitos. Peço a Vossa Diabrura que volte a telhar a casa, para que eu me abrigue da chuva, que em rompendo a luz do dia sairei logo. Contente-se, por castigo do meu erro, com os sobressaltos e sustos que me tem dado, e se quer que conversemos um pouco, apareça, que ânimo tenho para isso, e, por mais feio que se me apresente, não usarei das palavras que sei para me livrar da sua Demonência, nem lhe direi Vade de Retro Satanás!, nem o notificarei com os exorcismos que tanto descompõem Vossa Diabrura». In António José Silva (1705-1739),As Obras do Diabinho da Mão Furada, 1861, A Primeira Novela Sobrenatural Portuguesa, Luso Livros, Nova forma de Ler, ISBN 978-989-817-496-3.

Cortesia de LLivros/JDACT