«Escrita durante os inícios do século XVIII (1700) esta novela tem a particularidade
de ser considerada a primeira novela de terror portuguesa, apesar de conter
também muitos elementos cómicos. Sendo de autoria anónima, a obra tem levantado
uma ampla discussão em torno da identidade do seu autor a partir do momento em
que o seu anuscrito (ou uma cópia do original) foi descoberto no século
seguinte. Mesmo quando se levantou a presunção de ter sido uma obra da autoria
de António José da Silva, mais conhecido pelo cognome o Judeu e que viria a morrer nas fogueiras da inquisição, esta não
foi consensual. No entanto acabou por publicada em 1861, pela primeira vez, com o título e o subtítulo de Obras do
Diabinho da Mão Furada, uma novela Diabólica de António José da
Silva, o que ajudou à sua divulgação pois na época a sociedade fazia uma
reflexão sobre as injustiças da inquisição [maldita (que se extinguiu,
oficialmente só em 1821)] e António
José da Silva era visto como um dos mais notórios mártires desse tempo. Fosse
ou não o autor, o seu nome acabou por ficar associado à obra. Não é possível
dizer em que termos a obra foi divulgada na época que foi escrita, se é que o
chegou realmente a ser. Teria sido vendida sob a forma de folhetins? Teria
sido narrada em salões de convívio da nobreza ou da burguesia, como era costume?
Ou em botequins (bares da época) a ouvintes dispostos a ouvir? Não é
possível sabê-lo. Mas a obra certamente foi escrita com o intuito de
aterrorizar e de divertir quem a lesse ou ouvisse e faz um retrato perfeito e
mordaz da mentalidade e dos costumes da época em que foi escrita. É uma
aventura que descreve uma caminhada do Alentejo a Lisboa, cheia de peripécia e
com elementos que claramente invocam a obra de Dante Alighieri, A
Divina Comédia que tanto servem para aterrorizar, moralizar (pelo medo)
e para divertir através do sarcasmo e da paródia.
Será pertinente falar também do demónio que a obra
invoca: O Diabinho da Mão Furada. O nome original deste personagem, e
pelo qual ainda é conhecido nalguns locais do Norte de Portugal, é Duende da
Mão Furada, uma criatura folclórica galaico-portuguesa que remota ao tempo
dos celtiberos. É um duende caseiro e que tanto concede favores e benefícios
como engana e prega partidas. Tem na cabeça um barrete encarnado, faz
desaparecer peças de roupa ou outros objectos da casa e faz azedar a comida que
acabou de ser feita; mas também é capaz de trazer a paz e a felicidade ao lar
se o mantiverem satisfeito. Para isso basta deixarem-lhe migas de pão ensopadas
em leite num prato, durante a noite, em qualquer canto da casa. Se está de
muito mau humor entra nos quartos, durante a noite, através do buraco da
fechadura das portas, põe-se à vontade em cima das pessoas e causa-lhes grandes
pesadelos. Tem as mãos furadas porque são mãos cheias de enganos e não se pode
confiar nele, mas que também o faz derrubar muitos dos objectos domésticos que
por vezes tenta roubar. Durante os séculos XVII e XVIII, séculos de forte
domínio católico que abarcou praticamente tudo ligado ao paganismo, o duende
das mãos furadas assumiu a forma de um diabrete e passou a chamar-se de Diabinho
da Mão Furada ou Fradinho da Mão Furada; um ser malévolo e ligado aos
medos dos infernos mas que manteve a personalidade brincalhona e sempre
disposto a pregar partidas. Para além de uma actualização ortográfica, a
presente edição foi alvo de uma adaptação linguística corrente, nomeadamente,
em passagens em que se verificou que linguagem usada no século XVIII
dificultava, em grande escala, a leitura da obra». In Equipa Luso Livros.
«Retirou-se
um soldado da milícia de Flandes, no tempo de Felipe II, chamado André Peralta,
afligido e mal tratado da guerra, tão pobre como soldado e tão desgraçado como
pobre. Depois de entrar neste Reino de Portugal, onde tinha nascido, caminhava
para Lisboa, pátria comum de estrangeiros, madrasta dos naturais e protectora
dos venturosos. Quando começou a anoitecer estava ele a uma légua de distância
da cidade de Évora, num sítio aonde estavam umas casas abertas e desocupadas de
gente. E vendo o soldado caminhante que a noite ameaçava com a escuridão
medonha e que as nuvens sem descansar choviam dilúvios de água, resolveu passar
a noite, como pudesse, nalguma casa mais reparada daqueles edifícios,
contentando-se para seu sustento as limitadas provisões do seu alforge. Primeiro
cortou com a espada alguns ramos de umas árvores e arbustos que estavam ali por
perto, para acender uma fogueira com que se pudesse enxugar da chuva e o
livrasse do frio, e só depois recolheu-se a uma das casas que julgou mais
acomodada. Lá dentro, tirou do alforge fuzil e pederneira (também conhecida por sílex, é uma pedra que
ao embater com uma peça de metal, o fuzil, produz uma faísca), que são
os mais importantes apetrechos de quem caminha, e acendeu um fogo. À luz da
claridade, varreu com uns ramos parte da casa em que se acomodou e depois de se
enxugar ceou parte do pobre sustento que trazia.
Já tinha o
Soldado, depois de cear, dormido um breve sono, e estaria passada a terça parte
da noite, quando o acordou um grande barulho e estrondo que vindo das divisões
vizinhas; e, aplicando ao lume alguns ramos já secos, para que com mais
claridade pudesse melhor testemunhar o que aquilo era, ouviu que uma voz
desentoada e medonha que lhe disse: Sai, atrevido soldado, desta casa, se não
queres morrer nela soterrado e desfazendo-se sobre ti. A esta voz, viu o
Soldado, no seu parecer, que as paredes da casa em que estava estremeciam,
prognosticando a sua ruína, e que os fragmentos das antigas portas e janelas se
quebravam. Mas nem por isso perdeu a compostura e fazendo das tripas coração,
para não o matar primeiro o medo que o perigo, como muitas vezes acontece aos
desalentados, respondeu à desentoada voz: Se és espírito transmigrado desta
vida, e necessitas de alguma coisa dela, rogo-te, da parte de Deus, me digas
quem és e o que pretendes, que ânimo tenho para te ouvir, e prometo-te que
farei tudo o que necessitares para o teu remédio, ainda que por ser um pobre
soldado me seja necessário mendigar para isso. Mas se és espírito maligno,
digo-te que nada me faz temer as tuas ameaças. Aqui tenho a cruz da minha
espada e as palavras me ensinou a santa fé católica que me livrarão de ti e dos
teus poderes, pois não tens jurisdição para executares nada sem que a Divina
Providência o permita. E se o facto de eu estar aqui, te chateia, pouco tempo
terás esta moléstia, pois da noite já é passada a maior parte, e assim que
aparecer a primeira luz da resplandecente aurora, irei logo, mas o rigor da
escuridão e tempestade que está a fazer não me dão lugar a obedecer-te neste
momento. Com isto me parece que se em ti há alguma luz de razão, podes-te dar
por satisfeito e desculpar-me por me atrever a ser teu hóspede, pois se no
campo havia de morrer esta noite posto à chuva e ao frio, pareceu-me lícito
amparar-me ao abrigo da solidão desta casa, a que me recolhi. Uma vez que estás
tão reticente em saíres, por julgares haver aqui agasalho, disse-lhe a voz, que
se faça aqui o estado que oferece o campo.
E
dizendo isto, num breve instante, destelhou-se o telhado da casa e ficou a
chover dentro dela como na rua. O Soldado, vendo-se naquele aperto, não teve
outro remédio senão meter-se a um canto da chaminé e, tomado de audácia para
com o dono da casa, que até ao diabo se obriga o uso de lisonjas, disse-lhe: Senhor
Barrabás, ou qualquer príncipe infernal, ou quem Vossa Diabrura seja, não é
política de sujeitos grandes usarem tais rigores com os humildes. Perdoe-me,
Vossa Diabrura, por ter violado a paz desta casa com a minha intrusão.
Considerando que o medo e o frio faz unir o homem com o seu inimigo, e, como o
frio desta noite era tão grande, obrigou-me a não ligar a preceitos. Peço a
Vossa Diabrura que volte a telhar a casa, para que eu me abrigue da chuva, que
em rompendo a luz do dia sairei logo. Contente-se, por castigo do meu erro, com
os sobressaltos e sustos que me tem dado, e se quer que conversemos um pouco,
apareça, que ânimo tenho para isso, e, por mais feio que se me apresente, não
usarei das palavras que sei para me livrar da sua Demonência, nem lhe
direi Vade de Retro Satanás!, nem o
notificarei com os exorcismos que tanto descompõem Vossa Diabrura». In António
José Silva (1705-1739),As Obras do Diabinho da Mão Furada, 1861, A Primeira
Novela Sobrenatural Portuguesa, Luso Livros, Nova forma de Ler, ISBN
978-989-817-496-3.
Cortesia
de LLivros/JDACT