Cleópatra
«Cleópatra Sétima, rainha do
Egito, amante de Júlio César e de Marco António, soberana de um império em
decadência cujas fronteiras sonha ampliar para muito além dos limites a que chegaram
os antigos faraós. Uma vulgar
prostituta? Uma criatura ambiciosa que não hesita em matar para concretizar os seus projectos? Uma destruidora de homens? Neste
belo romance de amor e morte, ganhador do Prémio
Planeta de 1986, o mais importante da literatura espanhola, o escritor
catalão Terenci Moix mostra uma outra verdade sobre essa mulher deslumbrante,
dona de vasta cultura e de enorme habilidade política, uma das personagens mais
fascinantes da História. Tendo como principal cenário a mítica Alexandria,
Terenci cria um vigoroso romance que resgata uma das personagens mais fascinantes
da História: Cleópatra Sétima, rainha do Egipto. A célebre soberana aparece
aqui como uma mulher de extraordinária cultura, apaixonada e ambiciosa, que
acalenta o sonho de transformar a sua Alexandria na capital de um vasto
império, do qual Cesário Ptolomeu, seu filho com Júlio César, seria o chefe
supremo. Seu amor por Marco António, retratado como um soldado grosseiro,
colecionador de derrotas políticas e militares, insere-se nesse projecto
grandioso. Mesclando ficção e realidade, Terenci leva o leitor a transportar-se
no tempo e no espaço para conviver com egípcios e romanos, sacerdotes e
prostitutas; para participar de batalhas e cerimónias místicas; e para conhecer
intrigas que determinaram a queda e a consolidação de dois impérios. Desse modo
é elaborado um deslumbrante painel da Antiguidade, merecedor do Prémio Planeta.
O romancista catalão Terenci costuma dizer que nasceu em algum ano da década de
50, no século XX, com um pé em Alexandria e outro em Barcelona. Em 1968-1969,
irrompeu no mundo da literatura com La torre de los vícios capitales e Olas
sobre una roca desierta,
que, aplaudidos pela crítica internacional, lançaram-no de
imediato a uma posição de destaque dentro da nova geração de escritores
espanhóis. Ganhador de cinco troféus importantes da literatura catalã, Terenci conquistou,
em 1986, o Prémio Planeta, com o
romance Cleópatra, rainha e
mulher (No digas que fue un sue-no). Opera, teatro,
pintura e cinema (uma de suas obras mais famosas é justamente O dia em que Marilyn morreu, publicado
pela Editora Globo) igualmente despertam o seu interesse e inspiram-lhe numerosos
artigos e romances». In Prefácio
«Quando à meia-noite se ouvir
passar uma invisível folia
com música maravilhosa e grandes
vozes,
tua sorte que declina, tuas obras
fracassadas,
os planos de tua vida que não
deram certo,
não chores em vão.
Como homem preparado há tempos,
como um valente,
dá o teu adeus a Alexandria, que
se afasta.
Não te enganes,
não digas que foi um sonho.
Não aceites tão vãs esperanças.
Como homem preparado há tempos,
como um valente,
como convém a quem de tal cidade
foi digno,
aproxima-te com passo firme da
janela
e ouve com emoção, não com
lamentos
nem súplicas de fracos, como
derradeiro prazer,
os sons, os maravilhosos
instrumentos da
folia misteriosa,
e dá o teu adeus a esta Alexandria
que perdes para sempre».
Poema de Cavafis, in ‘O deus
abandona António’
«Ela era o último membro de uma
raça solitária e subtil. Era uma flor que Alexandria havia tardado trezentos
anos a produzir e que a eternidade não pode murchar. E abriu-se ante um soldado
romano, simples mas inteligente... In Forster, Alexandria
Serpente
do Nilo
«E disse a mulher: Maldito seja
Amor, que me assassina. Tingi de morte o Nilo. Cobri de luto as nuvens.
Convertei o Egipto em sepulcro. E assim se fez. O pavor foi descendo pelo rio.
A morte instalou-se nas suas margens. E caiu o inferno sobre o universo. Cumprida
a ordem, uma densa nuvem negra cobriu os céus nos quais nunca há nuvens. Tão
insólita era que se diria o véu de uma deusa traiçoeira. Dir-se-ia sangue
apodrecido gotejando sobre os frondosos palmeirais, as florestas de papiros, os
pomares e jardins que um dia foram férteis. Uma galera real vogava com
majestosa lentidão em busca dos confins mais remotos do reino, onde este se
perde nos desertos que correm em busca das selvas ignotas, onde dizem que nasce
o rio santo. O negror chegava acompanhado por hinos tão tristes quanto o dia. Era
a percussão incessante de cem timbales doloridos. Era o bater de cem remos nas
águas, por sua vez tão tristes que também se tornaram negras. As ribeiras
encheram-se de camponeses procedentes dos vilarejos mais próximos. Chegavam em
procissão, e nos seus rostos enrugados, nas suas rugas sulcadas pelo sol de
muitos séculos, o espanto alternava-se com o medo. Jogavam-se no chão,
escondiam a cabeça entre os juncos, golpeavam o peito com pedras afiadas e esfregavam
os olhos com lodo, como se vem fazendo desde os tempos mais remotos quando
morre um monarca ou quando a natureza interrompe o seu curso inexorável, porque
os deuses não estão satisfeitos. A nuvem negra pousava sobre todas as cores da
paisagem, tão sensível nos albores do mês de Atir, quando a luz já não
chega, esgotada pelos flagelos do estio. Os palmeirais e os trigais, os bosques
de sicómoros, as mimosas, os hibiscos, as heras que sobem pelos palácios, tudo
que ontem foi uma profusão de esplendoroso colorido ficava encerrado naquela
cor única, manto sinistro que os camponeses, aterrados, não podiam reconhecer.
Pois ignoravam o tipo de perfume de cuja mescla brotava. Perfumes que os
escravos negros da nave espargiam por toda parte. Perfumes das noites de Alexandria! Emanações entre-mescladas
de sândalo, almíscar e ambarina; essências de incenso, patchuli e da mirra que adormece os sentidos; flutuações de
heliotrópio e açucenas combinadas com o sumo oleoso que as gardénias destilam quando
roçam o sexo de uma virgem nabateia. Em contacto com o ar, a mescla tingia-o de
luto. E, assim empeçonhadas, as auras caíam sobre os camponeses como uma condenação.
A noite mais pavorosa apoderava-se do dia. Todos interpretaram aquilo como um
augúrio do final do universo, segundo se anuncia nas inscrições dos templos
antigos. Os camponeses acolheram a catástrofe salmodiando cantos mortuários
aprendidos nos grandes funerais e transmitidos de uma geração a outra. Quando
os escravos que espargiam os perfumes descansavam um instante, a nuvem
artificial se diluía. Em meio a uma breve pausa, semelhante a um amanhecer,
surgiam como um consolo as águas familiares do Nilo e, sulcando-as, uma soberba
proa em forma de papiro. E, sobre as estrias rosicleres que seu avanço abria na
corrente, emergia a embarcação de Cleópatra
Sétima». In Terenci Moix, Cleópatra, Rainha e Mulher, Prémio Planeta, Espanha, Editora
Globo, 1989, ISBN 852-500-662-9.
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