domingo, 15 de fevereiro de 2015

De Volta a Istambul. A Bastarda de Istambul. Elif Shafak. «Qual é o problema, seu idiota? Uma mulher não pode andar em paz pela cidade? Mas para que andar se eu posso lhe dar uma boleia?, perguntou ele. Não vai querer molhar esse corpinho sexy, vai?

Cortesia de wikipedia

«Outrora havia; outrora não havia. As criaturas de Deus eram abundantes como grãos. E falar demais era um pecado...»

Canela
«Seja lá o que cair do céu, não o amaldiçoarás. Isso inclui a chuva. Por mais que desabe o aguaceiro, por mais força com que as nuvens se rompam ou o gelo do granizo caiem em bátegas sobre a terra, nunca se deve emitir blasfémias contra qualquer coisa que o céu tenha reservado para nós. Todos sabem disso. Inclusive Zeliha. Mesmo assim, lá estava ela na primeira sexta-feira daquele mês de Julho, caminhando por uma calçada que fluía próxima ao tráfego inevitavelmente congestionado, atrasada para um encontro, praguejando como um soldado, sibilando um palavrão atrás do outro para as pedras quebradas da calçada, para seus saltos altos, para o homem que a espreitava, para os motoristas que buzinavam freneticamente quando é sabido que buzinar não desatravanca tráfego algum, para toda a dinastia otomana por ter conquistado no passado a cidade de Constantinopla e se aferrado ao seu equívoco, e, sim, para a chuva..., aquela porcaria de chuva. A chuva era uma agonia ali. Em outras partes do mundo, um aguaceiro provavelmente chega como uma dádiva para quase tudo e todos, bom para as lavouras, para a fauna, para a flora, e com um toque extra de romantismo,para os amantes também. Mas não em Istambul. Para nós, a chuva não significa necessariamente ficar molhado. Nem mesmo ficar sujo. Se significa alguma coisa, é nos deixar com raiva. É lama e caos e fúria, como se já não tivéssemos o suficiente. É luta. Sempre significa uma luta. Como gatinhos jogados num balde d’água, os dez milhões de nós travam uma luta fútil contra os pingos. Não se pode dizer que estamos completamente sozinhos nessa refrega, pois as ruas também participam, com seus nomes antediluvianos escritos a estêncil em placas de metal, as lápides de tantos santos espalhadas em todas as direcções, as pilhas de lixo que esperam em quase todas as esquinas, os buracos gigantescos dos canteiros de obras que logo serão transformados em edifícios modernos e extravagantes, e as gaivotas... Todos nos enraivecemos quando o céu se abre e a chuva desaba sobre nós.
Então, quando os pingos finais batem no chão e muitos outros descansam nas folhas agora sem poeira das árvores, naquele momento desprotegido em que não se tem certeza de que parou de chover, da mesma forma que a própria chuva não tem, exactamente naquele interstício tudo se torna sereno. Por um longo minuto, o céu parece desculpar-se pela bagunça que causou. E nós, com gotículas ainda nos cabelos, lama nas calças e cansaço no olhar, fixamos de novo o céu, agora com um tom mais leve de azul e mais claro do que nunca. Olhamos para cima e não podemos deixar de sorrir em resposta. Nós a perdoamos; sempre o fazemos. Porém, naquele instante, a chuva ainda caía e Zeliha tinha pouco perdão no coração, se é que tinha algum. Estava sem guarda-chuva, pois prometera a si mesma que, se fosse idiota de desperdiçar dinheiro comprando outro guarda-chuva num ambulante para esquecê-lo logo que o sol voltasse, merecia ficar ensopada até os ossos. Além disso, fosse como fosse, era tarde demais. Já estava encharcada. Esse era um aspecto da chuva que se assemelhava à tristeza: a pessoa fazia tudo para permanecer intacta, segura e seca, mas se e quando isso falhava, chegava um ponto em que se começava a ver o problema não em termos de gotas, mas de uma torrente incessante, e decidia-se então que pouco importava se encharcar. A chuva pingava dos seus cachos escuros para os seus ombros largos. Como todas as mulheres da família Kazanci, o cabelo de Zeliha era formado por anéis crespos, negros como um corvo, mas, ao contrário das outras, gostava de mantê-lo assim.
De tempos em tempos, os seus olhos verde-jade, normalmente muito abertos e de uma inteligência feroz, apertavam-se em duas linhas de imaculada indiferença inerente apenas a três grupos de pessoas: os irremediavelmente ingénuos, os irremediavelmente retraídos e os irremediavelmente esperançosos. Não pertencendo a nenhum deles, era difícil entender a sua indiferença, mesmo que fosse tão fugidia. Num minuto estava ali, cobrindo a sua alma de uma entorpecida insensibilidade, mas no minuto seguinte desaparecia, deixando-a sozinha no seu corpo. Assim Zeliha sentia-se naquela primeira sexta-feira de Julho, insensível como se estivesse anestesiada, um estado de espírito poderosamente corrosivo para alguém tão cheia de entusiasmo.
Seria por isso que não tinha absolutamente qualquer interesse em lutar contra a cidade hoje, ou mesmo contra a chuva? Enquanto a indiferença subia e descia como um ioiô de ritmo todo próprio, o pêndulo de seu ânimo oscilava entre dois pólos opostos: congelando e fervendo de raiva. Enquanto Zeliha passava rapidamente por ali, os ambulantes vendendo guarda-chuvas, capas e lenços de cabeça de plástico em cores vibrantes a olhavam atentamente, divertindo-se. Ela conseguia ignorar os seus olhares do mesmo modo que ignorava o olhar de todos os homens que lhe fixavam o corpo com avidez. Os ambulantes olhavam também, com reprovação, para seu brilhante anel no nariz, como se ali estivesse a pista para seu desvio de decência e, consequentemente, o sinal de sua luxúria. Zeliha tinha um orgulho especial de seu piercing porque ela mesma o colocara. Doera, mas o piercing estava ali para ficar, assim como o seu estilo. Apesar do assédio dos homens ou da censuradas mulheres, da impossibilidade de andar sobre as pedras redondas quebradas ou de pular para dentro das barcas, e até do ralhar constante da sua mãe..., não havia poder na terra que impedisse Zeliha, mais alta que a maioria das mulheres na cidade, de usar mini-saias de cores vivas, blusas justas que exibiam os seus seios fartos, meias acetinadas de nylon, e sim, aqueles saltos tremendamente altos.
Quando pisou em outra pedra solta e notou a lama sob as manchas escuras respingadas na saia cor de alfazema, Zeliha despejou outra longa lista de palavrões. Ela era a única mulher da sua família e uma das poucas turcas a usar palavrões de modo tão solto, tão vociferante e com tanto conhecimento; portanto, sempre que começava a xingar, continuava a fazê-lo como se compensasse todas as outras. Daquela vez não foi diferente. Enquanto corria, Zeliha xingou a administração municipal passada e presente, porque, desde que era garota, nunca um dia chuvoso encontrara as pedras do pavimento ajustadas e presas. Contudo, antes de terminar os xingamentos, fez uma pausa abrupta, ergueu o queixo como se suspeitasse que a tivessem chamado; em vez de olhar em volta, porém, fez um bico com os lábios para o céu enfumaçado. Apertou os olhos, soltou um suspiro e em seguida despejou outro palavrão, só que desta vez contra a chuva. Entretanto, segundo as regras não-escritas e inflexíveis de Petite-Ma, sua avó, aquilo era pura blasfémia. Você pode não gostar da chuva, certamente não tem de gostar, mas em nenhuma circunstância deve xingar coisa alguma que venha do céu, pois nada desce de lá sozinho, e por trás de tudo está Alá, o Todo-Poderoso. É claro que Zeliha conhecia as regras não-escritas e inflexíveis de Petite-Ma. Naquela primeira sexta-feira de Julho, porém, sentiu-se suficientemente irritada para não dar importância a elas. Além disso, o que quer que tivesse dito já o dissera, da mesma forma que o que quer que tivesse feito agora já era passado. Não tinha tempo para remorsos. Estava atrasada para a consulta com o ginecologista. Na verdade aquele era um risco negligenciável, pois no momento em que se nota estar atrasada para uma consulta desse tipo, pode-se resolver não comparecer absolutamente.
Um táxi amarelo com adesivos por todo o pára-lama traseiro parou de repente. O motorista, um homem moreno de aparência áspera, com um bigode tipo Zapata e um dente de ouro na frente, que poderia muito bem ser um molestador nas horas de folga, estava com todas as janelas abaixadas. Sintonizado numa estação de rock local, seu rádio tocava Like a Virgin de Madonna no volume máximo. Havia uma discrepância gritante entre a aparência totalmente tradicional do homem e suas preferências musicais. Ele travou bruscamente, meteu a cabeça para fora da janela, assobiou para Zeliha e exclamou: Quero um pedaço disso! - Suas próximas palavras foram abafadas pela voz dela. Qual é o problema, seu idiota? Uma mulher não pode andar em paz pela cidade? Mas para que andar se eu posso lhe dar uma boleia?, perguntou ele. Não vai querer molhar esse corpinho sexy, vai? Enquanto Madonna exclamava ao fundo My fear is fading fast, been saving it ali for you, Zeliha começou a xingar, transgredindo assim a regra tácita e inflexível, dessa vez não de Petite-Ma e sim da Prudência Feminina: Nunca xingue um assediador. A Regra de Ouro da Prudência para uma Mulher de Istambul: Quando assediada na rua, nunca responda. Uma mulher que responde, sem se falar na que xinga o assediador, apenas ateará fogo ao entusiasmo dele! Zeliha conhecia a regra e sabia que era melhor não violá-la, mas aquela primeira sexta-feira de Julho não era como nenhuma outra. Além disso, outro eu se desencadeara nela agora, um muito mais solto, atrevido e temivelmente furioso. Era essa outra Zeliha que habitava a maior parte de seu espaço interno que tomara as rédeas das coisas naquele momento, tomando decisões em nome das duas. Por isso continuou a xingar a plenos pulmões. Enquanto ela afogava Madonna com a voz, os pedestres e vendedores de guarda-chuva amontoaram-se para ver a confusão que se armava. No meio do tumulto, o homem que a espreitava se afastou, sabendo que não era bom se meter com uma louca. Mas o motorista do táxi não era prudente nem tímido, pois recebeu todo o alvoroço com um sorriso. Zeliha notou seus dentes surpreendentemente brancos e impecáveis, e cogitou se teriam sido encapados com porcelana. Pouco a pouco sentiu de novo aquela onda de adrenalina escalar seu ventre, revirando-lhe o estômago e acelerando-lhe o pulso, fazendo-a sentir que, mais do que qualquer outra mulher de sua família, poderia matar um homem algum dia». In Elif Shafak, De Volta a Istambul, A Bastarda de Istambul, 2007, Editora Nova Fronteira, tradução de Myriam Campelo, ISBN 978-85-209-1996-5, Jacarandá Editora, 2015, ISBN 978-989-875-237-6.

Cortesia de EBF/JEditora/JDACT