quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

As Filhas de Rashi. Rachel. Maggie Anton. « Os dedos de Rachel tamborilaram pela arca que continha os seus bens mais preciosos, enquanto procurava, uma vez mais, o pergaminho que dela retirara nada menos do que umas dez vezes naquela semana»

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«As décadas finais do século XI viram os judeus de Troyes, França, entrar numa época de prosperidade financeira sem qualquer paralelo, de segurança política e de realização intelectual. Não houvera qualquer invasão por parte de exércitos durante gerações, e a última grande fome de vários anos já acontecera há mais de cinquenta anos. Sob o reinado iluminado do conde Teobaldo e da condessa Adelaide, as grandes feiras de Champagne atraiam mercadores de todos os cantos do mundo, alimentando o florescer de uma economia local que iria continuar ao longo de quase duzentos anos. Em todo o resto da Europa, as descobertas e as inovações estavam igualmente em ascensão. Os eruditos europeus haviam descoberto as perdidas filosofia e ciência dos gregos, que tinham sido traduzidas para árabe e melhoradas pelos seus homólogos muçulmanos, criando o cenário para o que, hoje em dia, é chamado Renascimento do século XII. Os judeus que viviam em terras muçulmanas mergulharam avidamente neste novo conhecimento, produzindo grandes poetas, filósofos, astrónomos e matemáticos. Os seus compatriotas em Ashkenaz (França e Alemanha) desviaram-se dos assuntos seculares e dedicaram-se ao estudo da Torá. Fundaram grandes yeshivot, academias avançadas para o estudo e a discussão do Talmude, a Lei Oral Judaica. Uma dessas yeshivot, embora mais pequena e situada em Troyes, onde se inicia a nossa história, foi fundada pelo Rabi Salomon bem Isaac, que ficaria conhecido e se tornaria venerado, séculos mais tarde, como Rashi, um dos grandes eruditos do judaísmo, autor de comentários tanto acerca da Bíblia como do Talmude. Não tendo filhos, Salomon quebrou a tradição e ensinou a Torá às suas filhas, Joheved, Miriam e Rachel. Embora a sua mulher receasse que nenhum homem iria querer casar com mulheres letradas, Salomon não teve qualquer dificuldade em encontrar, entre os seus melhores alunos, maridos para as filhas.
As duas filhas mais velhas tiveram casamentos combinados. Joheved foi prometida a Meir ben Samuel, filho de um senhor feudal dos arredores de Ramerupt, enquanto Miriam concordou em casar-se com Judah ben Natan, um órfão de Paris, cuja mãe conseguira sustentar-se a si e ao filho penhorando jóias e emprestando dinheiro a mulheres. Rachel, a filha mais nova, insistira que nada a deixaria feliz a não ser um casamento por amor, e casou com Eliezer ben Shemiah, filho de um rico mercador da Provença. No final do século XI, a yeshiva de Salomon expandiu-se, e eram cada vez mais os mercadores estrangeiros que aprendiam com ele enquanto vinham às duas feiras sazonais que tinham lugar em Troyes. E enviavam os seus filhos a Salomon para que passassem o resto do ano com ele; assim, os jovens poderiam aprender o Talmude, o que lhes daria acesso ao escalão mais elevado da sociedade judaica. Os genros de Salomon ajudavam-no, crescendo a cada ano a população de estudantes. Isso dava tempo a Salomon para escrever e rever os seus agora autorizados comentários. Além disso, Salomon e os seus trabalhavam nas vinhas da família, tratando das videiras, fazendo colheitas, e vendendo o vinho da sua adega.
Tal como as irmãs mais velhas, Rachel continuou a estudar o Talmude com o pai, embora isso não tivesse de ser mantido em segredo. Deu dois filhos a Eliezer, um rapaz e uma rapariga, e juntou-se a Miriam para estabelecer um negócio de penhores de jóias e de empréstimo de dinheiro, em Troyes, semelhante ao que a sogra de Miriam ainda mantinha em Paris. O futuro de Rachel parecia assegurado e feliz, afinal, era a filha favorita de Salomon, adorada pelo marido e, ao que tudo indicava, a matriarca de uma grande família de eruditos. Contudo, infelizmente para Rachel, o destino pareceu conspirar contra ela.

Troyes, França. Verão de 4851 (1091 D. C.)
Os dedos de Rachel tamborilaram pela arca que continha os seus bens mais preciosos, enquanto procurava, uma vez mais, o pergaminho que dela retirara nada menos do que umas dez vezes naquela semana. Respirou fundo e forçou as mãos trémulas a imobilizarem-se para que pudesse ler o texto relativo ao divórcio condicional. Caso eu não regresse após uma ausência de seis meses... Eu, Eliezer ben Shemiah, da cidade de Arles..., estando de mente sã e por minha livre vontade, liberto-te, desobrigo-te e renego-te, Rachel bat Salomon, que foste minha mulher, desde o passado até ao presente…, a fim de que possas ter permissão e controlo sobre ti própria para casares com qualquer homem que quiseres... Isto será da minha parte uma declaração de rejeição, um documento de libertação e uma carta de liberdade, de acordo com a Lei de Moisés e de Israel. Shemayah ben Jacob, como testemunha, Moses haCohen, como testemunha. Após terem feito amor durante toda a noite, ela e Eliezer tinham-se despedido com um beijo, no último domingo de Dezembro, depois do fim da Feira de Inverno, o que significava que os seis meses terminariam na semana seguinte. Os mercadores já tinham começado a chegar para a Feira de Verão, mas nenhum deles lhe trouxera uma carta». In Maggie Anton, 2009, Rachel, As Filhas de Rashi, tradução de Catarina e Joel Lima, Círculo de Leitores, 2012, ISBN 978-972-42-4776-2.

Cortesia de CLeitores/JDACT