«(…) A seu modo, Libro
de Manuel ensaia a necessidade dessa aproximação entre o espírito libertário,
lúdico, erótico e alegre, e os processos revolucionários. Não era, sem dúvida,
uma aposta pequena. Mas fica claro que para o escritor argentino se tratava de
uma aposta fundamental: apoiar as lutas de libertação, sobretudo na América
Latina, sem renunciar à liberdade e à imaginação criadora, a pretexto de
pragmatismo ou necessidades objectivas ditando a forma e o sentido da arte. Desse
ângulo, Cortázar precisava acertar as contas com a pesada herança do stalinismo
e do chamado realismo socialista. Sem
dúvida uma herança pesada e autoritária, que rompeu de vez as produtivas
aproximações entre vanguarda estética e vanguarda política. Fiquem como
exemplos, salientes, as tentativas dos surrealistas se aproximarem do movimento
comunista e a vanguarda soviética apoiando a Revolução em seu primeiro período.
Cabendo lembrar, e frisar, que ambas as aproximações entre estética e política
foram cortadas, de modo violento, pela ascensão do próprio stalinismo, que
encerrou de vez a conversa. Na forma nada subtil da censura, do exílio ou
prisão dos artistas. Tendo como marco, triste de lembrar, o suicídio de Vladimir
Maiakovski no final da década de 1920.
É certo que Cortázar, assim como muitos intelectuais e artistas, tanto na Europa
como na América Latina, viram na Revolução cubana a esperança de um outro
modelo, um contraponto ao stalinismo, na forma de um socialismo democrático,
que respeitasse e apoiasse a liberdade no campo da cultura e da arte. Um
divisor de águas nessa esperança acontece ainda na década de 1960, com o julgamento público do poeta
Heberto Padilla.
Para muitos que apoiavam a
Revolução cubana, ou ao menos eram simpatizantes, pareceu muito incómoda a
semelhança do julgamento do poeta com os Processo de Moscovo na década de 1930. Como era de se esperar, as
simpatias mais superficiais se desfizeram, e os apoios mais fundados e sérios
precisaram, de facto, lidar com um problema nada fácil. Cortázar não trata do
assunto, mas também não era um problema nada fácil de lidar a perseguição aos homossexuais
em Cuba, muitas vezes jogados em presídios comuns, como criminosos. As memórias
do escritor Reinaldo Arenas, que morreu de SIDA no exílio, dão uma
notícia amarga dessa perseguição infame. Não ajuda muito saber que no presente,
já velho, Fidel Castro tenha feito uma autocrítica da perseguição aos
homossexuais em Cuba. No que diz respeito à justiça social e a liberdade, Cortázar
foi sempre claro: o seu apoio à Revolução, fraterno e leal, jamais levaria a
um enquadramento da sua imaginação crítica e criativa. E assim, de facto, aconteceu.
O escritor argentino nunca colocou sua literatura a serviço de, nem reduziu o alcance do que escrevia ao horizonte
estreito e instrumental das disputas imediatas no campo das lutas e dos partidos
políticos. Em resumo, quis sempre criar pontes e passagens, manter vivo o
espaço que relaciona estética e política. Sabendo que a Revolução nunca é um
ameno piquenique ou convescote intelectual, mas acreditando que
liberdade e justiça social precisam andar juntas.
Já foi notado, e me parece correcto,
que Cortázar, em Libro de Manuel, leva as indagações de Rayuela, de tipo
existencial e libertário, para o contexto histórico e social do começo da
década de 1970. Para tratar de uma situação extrema, a ditadura militar
argentina e a resistência armada ao regime- apenas uns poucos anos depois das
revoltas de 1968, das quais
participou com entusiasmo e alegria. Na Paris que escolhera para viver. É desse
período um longo poema, uma espécie de colagem, intitulada Notícias del mês
de Mayo, publicado em Ultimo
round, no ano de 1969.(...) Poema-colagem em que se lê o momento
histórico, brevíssimo, em que a utopia
ocupou as ruas: Ahora estas noticias /
esta collage de recuerdos / Igual de lo que cuentan/ son la obra anónima:la
lucha / de um puñado de pájaros/ contra La Gran Costumbre. / Manos livianas las
trazaron / con la tiza que invienta la poesia en la calle / com el color que
asalta los grises anfiteatros. / Aqui prosigue la tarea / de escribir en los
muros de la Tierra: / El sueno es realidad. ( Cortázar, 1969)
O contraponto não poderia ser
mais forte, e difícil. Logo depois dessas imagens do Maio de 1968, da poesia
na rua, do sonho parecendo realidade, da imaginação ocupando o lugar seco do
poder e do costume mais conformista e arraigado, Cortázar precisava tratar de
um estado de excepção, com todo seu cortejo de massacres. Do lado de lá, em
Paris e na Europa, as esperanças de 1968
foram derrotadas, e as forças conservadoras voltaram a ocupar seu lugar, sem o
recurso ao estado de excepção aberto e declarado. Do lado de cá, na América
Latina, já começara, e continuaria ao longo da década de 1970, um ciclo pesado de
golpes e ditaduras. É com certa melancolia que se nota a extensão do recuo, em
tão breve espaço de tempo. Não poderia ser maior a distância que separava a
imaginação e o poder». In André Bueno, Alguns contos de Cortázar.
Literatura e autoritarismo, Espaço urbano e Experiências de desolação e
violência, revista nº 19, 2012, ISSN 1679-849X.
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