«(…) Saio do hotel, contorno a praça de palmeiras com uma
fonte e a esplanada de um restaurante para me dirigir pela avenida emoldurada
por buxos centenários que conduzia até ao Mirador da Boca da Ria, que sobretudo
contempla o fragmento de auto-estrada que salta através do céu para unir Vigo
com Marín e Pontevedra. Nunca tinha visto buxos tão majestosos, tão libertos da
sua condição de arbustos e tão bem plantados; em contraste, a sua disciplina
com a liberdade com que tinham crescido na ilha acácias, castanheiros, tílias,
camélias, pinheiros, eucaliptos e plátanos emergentes sobre tapetes espontâneos
de ervas trepadeiras filhas das chuvas galegas, como os fetos que coabitam com
as palmeiras nesta frágua ilha de vegetais robinsons de um primitivo naufrágio
da natureza. O buxo foi na antiguidade um símbolo funerário e, ao mesmo tempo,
de imortalidade pelo seu perene verdor, morte e eternidade, por isso substitui
a palmeira do Sul na celebração do Domingo de Ramos dos povos nórdicos e
encarna o mistério do ciclo da vida e da morte em quase todas as mitologias. E
ali está como um desmesurado vegetal para ilhas tão pequenas, quase impossíveis
em função das construções que crescem dia a dia, como se tentassem reconverter
passados tão tristes ou tão canalhas. Para um homem de70 anos, quase 71, é impossível
percorrer esta avenida sem alarme, entre a ameaçadora presença da natureza
questionando a minha hegemonia de predador de tudo o que é vivo, sejam alfaces,
sejam avestruzes. Avestruzes ou cangurus. Lembro-me da indignação moral que
vivi quando verifiquei que a carne de avestruz ou de canguru tinha penetrado no
nosso mercado alimentar, como se não nos bastasse uma nutrição criminosa
baseada na escravidão e sobre-exploração de vacas, borregos, porcos, frangos e,
inclusive, de trutas, lagostas, ostras de cultura, uma miserável oferta para o apregoado
Rei da Criação, normalmente um malvado imbecil que mereceria morrer de fome.
Merecê-lo-ia, se não soubesse a lista de reis godos ou dos
carolíngios ou das capitais do mundo resultante da queda do Muro de Berlim ou
de como cozinhar os seus próprios crimes, elevando-os à condição de
gastronomia. A cultura patrimonial e a linguagem divulgadora são as provas
convincentes da nossa hegemonia, tendo em conta que o dinossauro morreu porque
era um dinossauro e as formigas irão sobreviver depois de nós, mas escravas de
uma logica cavernária que as impedirá de lutar pelo poder contra os ácaros e
contra as mulheres. Os ácaros ganharão. Sinto-o pelas formigas e pelas
mulheres, ainda que as duas alternativas circulem prepotentes da aparente
ausência de vontade de poder, as formigas, ou da denúncia da masculina vontade
de poder, as mulheres. Sarcástica mentira, sobretudo para o velho catedrático
que observou cinquenta anos de ascensão das suas colegas femininas, com uma
capacidade de mordedura e embuste perfeitamente masculina, quando não utilizaram
mesmo as mamas ou as co…, das quais carecem quase todos os homens. Sinto-o. Sou
um misógino. Mas as mulheres não poderão com os ácaros. Os ácaros aguentam,
inclusivamente, a bomba de neutrões e não necessitam de se disfarçar de outra
coisa para permanecerem no ar ou nos nossos pulmões. Estão em todo o lado. São
Deus. Repetem o poder do invisível
para criar ou destruir o visível.
[…]
Meus caros colegas e
amigos: outorga-me uma certa liberdade de forma e de fundo o facto de estar a
pronunciar esta conferência no dia da minha morte como catedrático, quase a
ingressar no Limbo dos eméritos, que somos algo assim como capitães-generais
sem comando de praça ou rainhas-mães com urgentes e urgidos príncipes
herdeiros. E se escolhi como matéria Eric e Enide, o primeiro romance do
ciclo arturiano de Chrétien Troyes, é porque não passou à nossa cultura arturiana
como o mais relevante, sepultado pela prepotência simbólica de outros heróis,
Parsifal e Lancelote os mais singulares, nada menos que as histórias do
demandador do Santo Graal, ou seja, da Redenção, ou seja, do Absoluto, ou o
cavaleiro maldito por um amor excessivo com a rainha Guinevere, a mulher do
patrão. Tereis observado certas liberdades expositivas no início deste
discurso final, quase sem citações, porque a velha querela, mesmo para os
romanistas da minha geração, entre manière e matière, revive ainda que
não a convoquemos e ressuscitou-me, exigindo-me que uma conferência informal
não tenha outra forma que a informalidade, dentro dos limites. A cultura literária,
derivada do possível substrato mítico e simbólico greco-latino, alimentou-se
desses referentes e disfarçou-os ou modificou-os em contacto com mitos e
símbolos que lhe chegaram dos bárbaros, sejam as sagas nórdicas ou o
avassalador brio dos heróis ário-germânicos tão recentemente recodificados por
Wagner e pelo nazismo ou os mitos celtas que se colaram na literatura da Baixa
Idade Média e do primeiro Renascimento, mais tarde relegados até que
regressam com o romanticismo, com a força que, por vezes, conservam os vencidos
e os mortos. […] In Manuel Vázquez Montalbán, Erec e Enide,
2002, Difel, Algés, 2003, ISBN 972-29-0651-8.
Cortesia de Difel/JDACT